Desde as primeiras memórias tenho enraizado o carinho e gratidão com a minha terra natal: São João da Boa Vista, na Serra da Mantiqueira, interior de SP.

Sempre amei passear pelo estrato herbácio do Cerrado, com vegetação baixa, seca e arbustiva, torcendo pra encontrar jaguatirica, cachorro-do-mato ou lobo-guará. Pedalar pela roça e parar pra comer seriguela, manga e macaúba num dia de sol de “rachar o côco”, desviando das jararacas, corais e cascavéis era pura aventura.

Após as pausas pra descansar, sempre tinha que bater as botas e luvas para certificar que não havia aranha armadeira ou escorpião amarelo, altamente peçonhentos, justamente para eu não “batê as botas”. Comer flores espontâneas de vinca e begônia pelos campos, com aquele sabor azedinho e gostoso era super refrescante.Quando entrava no estrato lenhoso do Cerrado, no município vizinho de Águas da Prata, divisa com Poços de Caldas (sul de Minas Gerais), o clima mudava drasticamente para uma vibe de Mata Atlântica. As árvores mais frondosas, o cheiro de mato molhado – famoso “chêrin di bosque”- com a temperatura mais amena, facilidade de respirar, rios mais fartos e cachoeiras também. Com uma mata mais fechada, cogumelos cresciam nos troncos, árvores frutíferas super suculentas, urtigas que ardiam mais que pimenta quando roçavam na pele, cipós pendurados, abrigavam outras espécies de animais como aranha caranguejeira, onça-pintada, sucuri, pernilongos, borboletas exuberantes e outros insetos coloridíssimos!

Quando pirralho, fazia com a minha família as “caminhadas ecológicas” onde meus pais explicavam a importância de respeitar o meio ambiente, os animais e todo o equilíbrio do ecossistema. Naquela época não se falava sobre sustentabilidade como fazemos hoje, porém fomos educados a venerar a mãe natureza. Todo lixo que víamos nas trilhas e campos, coletávamos para o descarte adequado.

Privilegiado, cresci numa chácara na beira do Rio da Prata, onde sempre via algum marrecão, marreco, pato selvagem, e, martim-pescador se alimentando na barrenta água. Ratões do Banhado, gambás, ouriços, tatus e capivaras viviam rodeando a casa em busca de refúgio, acasalamento, abrigo nos barrancos do rio ou no bambu-imperial. Eles viviam roendo algum coquinho de macaúba ou frutinha que rolava após “cair de madura” ou que escalavam para capturar. Aliás, vira e mexe eu encostava no barranco e tentava pescar algum peixe. Durante o dia tinha mais lambari e tilápia, e, ao entardecer colocava a vara de bambu próxima do barranco para tentar fisgar algum bagre saindo da toca. Dá-lhe repelente pra afastar os borrachudos!

Galos que anunciavam o começo do dia, tucano, gavião, maritaca, bem-te-vi, joão-de-barro, beija-flor, sabiá, pica-pau e outras aves faziam a sinfonia durante o dia, além das cigarras que anunciavam o começo da primavera. Quando estava perto dos maracujás e aparecia mamangaba era um puta desespero, morria de medo.

O nosso pôr-do-sol é tão mágico que a minha cidade é apelidada de “Cidade dos Crepúsculos Maravilhosos” que dispensa mais palavras para descrevê-la. Durante a noite ouve-se o som de frenéticos morcegos, corujas, grilos, o eco do sapo-martelo e o melancólico som do urutau. Quando eu era criança, a lua nova no verão era pura diversão para correr atrás dos vaga-lumes na escuridão.A farta abundância em árvores e arbustos frutíferos da chácara fazia a nossa alegria e a dos bichos também. Manga, butiá, pitanga, bananeira, maria-pretinha, morango-silvestre, amora, jabuticaba, mexerica, cidra, tangerina, limão e laranja totalmente orgânicos. Minha avó materna passava o dia conosco, e tinha muito apreço por plantas ornamentais, flores e um xodó nas orquídeas e begônias. Mas ela não era chegada num “matinho” não. Pobres PANC, eram quase todas capinadas. Em contrapartida, minha bisavó materna e minha tia avó sempre tiveram hortas e muitas ervas para curar os diversos males. Elas plantavam os seus remédios. Meu avô paterno também teve horta em seu sítio, além de ter trabalhado por alguns anos como produtor de café. Acredito que muita paixão que sinto em contato com a natureza e a paz de espírito ao manejar minhas plantinhas, vieram de brinde no meu DNA.

Quando decidi estudar Bacharelado em Hotelaria, na grande São Paulo em meados de 2008, abdiquei do confortável contato que tinha com a natureza, pois desta vez a minha meta era evoluir profissionalmente, buscando as melhores referências, técnicas, contatos, e a bagagem de vida que se acumula numa metrópole multifacetada. Meu refúgio nos dias de folga era o “bão e véi” Parque do Ibirapuera! Pela “selva de pedra” tive que aprender a desviar de outros tipos de animais peçonhentos… humanos mal intencionados que esperavam alguma brecha para o ataque, tentando levar até as botas!

Logo, achava que tinha entendido como a banda tocava e mergulhei no universo cosmopolita. Confesso e não me orgulho em relatar que nessa busca por consumir, estudar e servir coisas tão distantes da minha realidade, deixei brevemente de ser “cachorro-do-mato” pra ter o “complexo de vira-lata” onde muitas vezes valorizei mais o que vinha de fora ou de longe. Felizmente não levei muito tempo para cair na real.

Em 2012, após a passagem por duas redes hoteleiras, retornei para minha terra, e tive a alegria de trabalhar com o cozinheiro Gabriel Vidolin, atuante no movimento mundial “Slow Food” em seu restaurante gastronômico e autoral, que fortalecia o vínculo com os pequenos produtores e o engajamento com a nossa comunidade. Foi um momento muito interessante na minha vida, onde passei a resgatar memórias e enxergar como eu sempre tive tudo isso em meu alcance, mas não sabia o real valor desta cultura capiau e hospitaleira por natureza, repleta de afeto, acolhimento e humildade.

Um ano depois retornei para a Capital com um novo olhar e fui focado no ofício de servir e produzir desde insumos para coquetéis a cervejas de panela, onde aprimorei os conhecimentos em técnicas de fermentação, maceração, tinturas, maturação, clarificação e esses “trem tudo”. Sempre em busca de conhecimento e evolução. Quando conseguia voltar para a “Cidade dos Crepúsculos Maravilhosos” fazia questão de pegar a “branquinha” ou “amarelinha” direto do Alambique da cidade, além de coletar o máximo de diversidade de frutas e temperos para criar receitas e dividir com orgulho um pouco do “terroir” caipira para os clientes e amigos.

Em 2014, quando trabalhei nas extintas casas “Tofiq House” e “Casa Café”, morava no centro da cidade e tinha uma horta repleta de hortaliças convencionais e também as tradicionais “PANC”. Muitas vezes acordava cedo com o alvoroço das abelhas nas jardineiras da janela do quarto, que estavam se deliciando em flores de erva-doce, lavanda, capuchinha, manjericão, amor perfeito, rosas, cravinas, entre outras.

Entre idas e vindas do interior para a capital, decidi fincar de vez a bandeira da “Coquetelaria Capial” na minha região, onde sempre estiveram as minhas raízes. Sinto que consigo com mais qualidade de vida somar na coquetelaria e inspirar outras pessoas a se conectarem com sua região, povo e Bioma. Atualmente estou em processo de criação de uma horta que irá fornecer insumos para meu futuro Bar, a fim de fomentar e difundir a Coquetelaria Brasileira, de maneira sustentável.

O único luxo que almejo é ter a qualidade de vida para acordar com o galo cantando, falar “aoooba” para conhecidos e desconhecidos, andar sossegado pelas ruas, apreciar a lua e as estrelas durante a noite, me banhar na água gelada da cachoeira no quente verão, poder contribuir em minha comunidade e depois de mandar 2 bolas de sorvete de Macaúba poder falar em paz: “Bão por Bosta!”.

Receba nossa newsletter com os melhores artigos do universo da mixologia.

Obrigado por se inscrever!