Morte do idealizador do projeto provocou um racha entre familiares e a organização do concurso, colocando incertezas na indústria de bebidas em relação ao futuro da competição
Em 2017, surgia um movimento na coquetelaria para valorizar a cachaça com um novo coquetel no palco. Começava aí, a missão pessoal de Mestre Derivan de colocar o Rabo de Galo no mapa etílico do mundo. Os primeiros passos foram tímidos, com a criação de um concurso em 2018, em São Paulo.
Foram anos de trabalho para o jogo virar e ganhar espaço. De lá para cá, a mistura de cachaça, vermute tinto e ou Cynar ganhou o mundo até chegar à tão cobiçada vaga na lista da International Bartenders Association( IBA), que deve ser divulgada nos próximos meses. Quando tudo parecia prosperar, a notícia da morte de Derivan, em maio deste ano, em Sesimbra, em Portugal, trouxe consigo um revés:
Quem levará esse legado adiante?
— Com a morte de Derivan, que culmina justamente com a entrada do Rabo de Galo na IBA, pena que ele não pode ver isso, a missão foi cumprida. O objetivo foi cumprido. Com o drinque na IBA e sem o Derivan entre nós, não vejo mais da mesma forma. As coisas para mim perderam um pouco do significado — diz Milton Lima, um dos fundadores da Cúpula da Cachaça, que sempre acompanhou a trajetória de Derivan e, por compartilharem a mesma data de aniversário, chamavam-se de taurinos do Rabo de Galo.
— O que vem depois é uma discussão de família e de parceiros de trabalho, que é um pouco desnecessária. Em momento algum, o mestre tinha interesse financeiro nisso. Se pagasse os custos da produção, para ele, já estava ótimo. Ele não buscava dinheiro, mas reconhecimento, respeito. Queria botar a marca dele nessa coisa da IBA, como fez com a caipirinha. afirma Milton.
Apesar de ser figura icônica e emblemática e a cara do Rabo de Galo, Mestre Derivan não trabalhava sozinho. Desde o início, tinha parceiros na para colocar os concursos de pé, seja na organização ou na administração. A ele, cabia sempre o papel que fazia com maestria, o de mestre de cerimônias, com um carisma inabalável. Os filhos, embora bartenders, nunca o acompanharam na missão dos campeonatos. No início, quem tinha essa função era o bartender Daniel Júlio.
Daniel começou a trabalhar com Mestre Derivan em 2014. Em 2016, começaram a ensaiar os primeiros passos do Concurso Rabo de Galo. No ano seguinte, criaram a empresa RDG, na qual eram sócios, e realizaram o primeiro concurso no ano seguinte. Juntos, fizeram as três primeiras edições nacionais do campeonato.
— O intuito sempre foi elevar a cachaça para o mercado, promover um encontro entre os bartenders e colocar mais um coquetel na IBA — lembra Daniel. — Era um encontro da valorização da coquetelaria, a questão financeira era uma consequência.
Depois da pandemia, Daniel mudou o rumo da vida, passou a trabalhar na indústria metalúrgica e abriu mão da sociedade. Continuaram amigos até os últimos dias de Derivan. Chegaram a se falar no aniversário do Mestre, no dia 10 de maio.
— Ele estava vivendo momentos de êxtase com a dimensão que o concurso tinha alcançado mas, infelizmente com a partida dele, isso se perdeu. Acabou virando um negócio e acabou chegando a um ponto não muito legal — avalia Daniel, que não pretende voltar a trabalhar diretamente com os concursos, mas está dando suporte à família nesta retomada. — O Rabo de Galo sempre foi um encontro relacionado ao pessoal da coquetelaria, aos bartenders, aos apreciadores da cachaça. Uma coisa que não pode acontecer é que o legado do Mestre que foi construído durante esses mais de 40 anos de profissão seja manchado por pessoas que nunca tiveram vínculo com a nossa categoria.Desde 2021, essa função passou a ser de Fábio Freitas, que trabalhou com ele até o último dia. Fato é que o concurso ganhou visibilidade e se profissionalizou bastante desde então, com a chegada de novos patrocinadores e quando as redes sociais ficaram mais ativas, inclusive com o canal do YouTube, com programas e quadros específicos. Alguns mediados pelos dois, inclusive.
O caldo entornou.
Foi Fábio quem deu a notícia da morte de Derivan para a famíllia. Segundo eles, quando foi entregar os pertences de Derivan, Fábio não só prometeu que nada mudaria em relação aos negócios, que eram 50% dos lucros para cada parte, como também pediu uma quantia em dinheiro para que desse sequência aos campeonatos. Ele fez alguns comentários que desagradaram a família que acabara de sofrer uma perda inestimável.
— Ele não respeitou o meu luto, não respeitou minha família. Cabe a gente o que a gente vai fazer, não a ele. Só quero respeito ao meu luto. Tem muita gente que não está respeitando a história do Derivan —disse Dona Luci Monteiro, a viúva de Derivan, que alega que os pagamentos não estão sendo feitos da forma prevista. —Ainda não consegui terminar o túmulo do Derivan até hoje.
Desde então, foram realizadas três etapas regionais, uma em Barretos, São Paulo, e outra em Belo Horizonte, Minas Gerais. Apenas a do Bar Convent SP 2023 teria sido paga integralmente, de acordo com a família. Além disso, os lucros do campeonato em Portugal ainda não teriam sido totalmente depositados. À família, Fábio teria dito que está tendo dificuldades em receber os boletos depois da morte de Derivan.
Baixe aqui o Relatório “História e Importância do Rabo de Galo – 2023” produzido pelo Mixology News.
A relação azedou de vez e em 11 de agosto. A família deixou claro o racha entre as partes com uma publicação nas redes sociais, dizendo que “Rabo de Galo e Mestre Derivan são marcas devidamente registradas e não autorizamos o uso das mesmas” e que “também não autorizamos o uso da marca Mestre Derivan e imagem de forma comercial”. Dias depois, pleitearam o protagonismo do legado na figura de seus filhos, Douglas Monteiro e Danty Souza, também bartenders, dizendo que eles agora estariam à frente do comando dos concursos nacional e internacional Rabo de Galo, integrados a uma nova equipe.
Em um vídeo que circulou por grupos de WhatsApp, Fábio deu a sua versão da história. Disse que o concurso nacional é uma marca que pertence à família e que se ele tem ou não direito a alguma parte dela, é uma questão que corre em segredo de Justiça. Mas que os concursos regionais e internacional são uma outra questão, e que continuarão acontecendo.
“A família do Derivan tem o intuito de fazer o concurso nacional, estão no direito deles, não tem problema nenhum. Porém, eu estou dando continuidade ao trabalho que a gente já fazia com as regionais e com as etapas internacionais”, disse Fábio, que completou: “Vejam por outro lado, vamos ter mais um concurso de Rabo de Galo, isso é muito bom. A ideia desde o início era promover a cachaça, era promover a coquetelaria com cachaça, o produto nacional.”
Em áudios trocados entre eles, Fábio deixa claro que não se interessa mais pela empresa RDG, que ele não é inimigo. Mas que se ele não for visto como parceiro, ele será visto como funcionário, e terá encargos trabalhistas.Fábio credita a ele as etapas regionais, em 2022, e a internacional deste ano do concurso, e pretende seguir com eles, mas agora, com uma nova empresa, promoverá outros eventos de coquetelaria, como um festival de caipirinha. Procurado, Fábio não quis falar com a reportagem.
Já a família vinha pedindo que os filhos fossem inseridos pelo Fábio nos campeonatos (regionais e internacional) não apenas como figuras decorativas, no papel de jurados, mas como parte integrante da equipe, para “botar a mão na massa” e continuar a escrever a história que o pai começou a escrever na coquetelaria. Então Fábio alegou que “não havia verba para isso, e que não adianta querer impor a vontade deles”.
Daqui para frente
O Concurso Rabo de Galo acontecia de três formas: as etapas nacionais, regionais e internacional.
Criadas por Mestre Derivan em 2018, as nacionais, por enquanto, estão em processo de reestruturação pela organização da família. Eles dizem que já têm projetos previstos e anunciam novidades em breve, mas ainda não há nada de concreto.
Ao que tudo indica, este folhetim ainda terá novos capítulos, que podem até mesmo ser decididos na Justiça.
Apesar de achar que a missão Rabo de Galo chegou ao fim, Milton Lima acredita que a arte e os ensinamentos de Mestre Derivan devem seguir em frente, mas questiona se os caminhos que estão sendo traçados são os mais adequados para isso.
— O que o Mestre gostaria de fazer agora? Talvez buscar outro coquetel? Vamos para cima do Macunaíma? Do quentão de São João? Vamos para cima de outra coisa. Seria louvável, a cachaça ganharia, a coquetelaria ganharia. Vamos continuar o que deu certo — diz ele, que pondera. — Agora, vai ser difícil continuar sem o Derivan encabeçando uma coisa dessas. Ele sempre valorizou a coquetelaria brasileira usando insumos brasileiros, e talvez brigasse pelo Macunaíma. Se todo mundo fizesse um pouquinho, seria um novo desafio.
A verdade é que mestres como Derivan não veremos em breve. O homem que fazia pulsar a história da coquetelaria brasileira por onde passava, nos bares que frequentou nas últimas quatro décadas.
Ele não contava história dos outros, ele fazia a história acontecer.
Em 2024, Derivan de Souza faria 50 anos de balcão. Mesmo não estando mais por aqui, seu legado segue eterno e reside um pouco dele em cada bartender brasileiro.
Receba nossa newsletter com os melhores artigos do universo da mixologia.
Obrigado por se inscrever!