Uso de rum envelhecido em prova para reproduzir Caipirinha provoca saia-justa na grande final do World Class gerando debates e memes nas redes sociais

Último desafio da 14ª edição do World Class Diageo global, em São Paulo (o Brasil recebeu o evento pela segunda vez, a primeira foi no Rio de Janeiro em 2012). Numa prova de precisão e velocidade, os 12 finalistas teriam seis minutos para executar dez coquetéis cada um: um martíni perfeito, um coquetel com ingredientes locais de uma caixa misteriosa e oito Zacaipirinhas – isso mesmo, uma releitura de Caipirinha, só que com rum envelhecido.

Vocês conhecem a Caipirinha, o coquetel brasileiro? Então, façam ela com Zacapa. Fácil, não? – disse Nicola Pietrolungo, gerente de advocacy da Diageo e apresentador da premiação.

A missão, porém, parece não ter sido tão simples assim, um dos competidores, inclusive, chegou a receber um nada agradável zero da jurada Monica Berg, eleita em 2023 a mulher mais influente da indústria pela Drinks International. A utilização do destilado para representar um coquetel tão brasileiro causou certo desconforto nos bastidores e entre os mais puristas e gerou uma enxurrada de memes nas redes sociais.A indústria faz isso com a Caipirinha não é de hoje, e todo mundo aplaude de pé. Pode até ir às mídias sociais dar um grito ou outro, mas acaba fazendo. É uma coisa do brasileiro como um todo – analisa Laércio Zulu, que acredita que esse é um comportamento específico da nossa cultura.

A gente carrega esse vazio. Onde você consegue imaginar um mexicano recebendo visitantes com uma Margarita com pisco só porque está no Chile? Parece uma ofensa. Mas o brasileiro não tem essa propriedade sobre o que é dele. E isso não serve só para a Caipirinha, vale para tudo.

Tanto o que foi falado nos bastidores, quanto o que mostram os vídeos disponíveis no canal oficial da marca no YouTube dão pistas de que o que foi feito ali não poderia ser considerado Caipirinha. Não só pelo aspecto, nem só pela cachaça, mas pela técnica. Era nítido a falta de familiaridade dos competidores com uma das joias mais respeitada em nossos bares.

Em uma prova que era mais de velocidade do que de habilidade, ninguém executou o coquetel com maestria. No mais, o ideal, neste caso, seria ter um juiz brasileiro para a etapa, fosse Caipirinha, Caipiríssima ou mesmo a tal da Zacaipirinha.

– Não sou purista com nada, mas acho que o World Class perdeu uma oportunidade de marcar a edição brasileira com uma prova realmente de Caipirinha, com cachaça, claro. Seria original e respeitoso com o país que estava sediando a competição. Também seria legal ver como bartenders do resto do mundo encarariam o desafio. Infelizmente, vai ficar para a próxima. No mais, poderiam pelo menos ter chamado de Zacapa Sour, não é? – sugeriu uma das tantas pessoas que acompanhava a prova no salão do Hotel Tívoli.

Nicola Pietrolungo esclarece que as provas do World Class são elaboradas pelo time global da empresa e que não são decididas pela equipe local. Além disso, todos os desafios do campeonato devem usar marcas do portfólio global e a Diageo não tem cachaça nessa categoria.

– Você não consegue dar a mesma paridade aos competidores porque não são todos que têm acesso à Ypióca, por exemplo. Eles não conhecem o produto para poder desenvolver seus drinques. Por isso a cachaça não foi usada – justifica.

Ele conta que foi a primeira vez que houve uma prova específica dentro do campeonato para homenagear o país sede, mas reconhece que houve certo desconforto com a deferência.

– Entendo o mal-estar que isso possa ter gerado, mas houve uma vontade de fazer algo mais brasileiro. De fazer uma “Caipirinha” justamente como agradecimento ao Brasil. As pessoas do time global sabem o que é cachaça, são pessoas deste universo, não tinham o intuito de menosprezar ninguém, nem entrar em conflito algum, apenas agradecer.

Para Zulu, a proposta da prova foi amadora, bem rasa, e a forma com que os competidores executaram as Zacaipirinhas mostra muito o quanto eles sabem sobre nós. Uma masterclass de Caipirinha para os competidores seria uma excelente opção para homenagear nosso país e nossa coquetelaria de forma elegante e representativa.

– Acredito que o campeão do mundo não saiba fazer uma Caipirinha boa porque, provavelmente, nem acessa uma cachaça de qualidade. O corte de limão que ele sabe ainda é aquele de quatro pedaços. Desculpa, isso é muito anos 1980. Ninguém mais usa isso para fazer uma Caipirinha boa – pondera Zulu.

– Os tempos mudaram, assim como ninguém mais faz Negroni montado. Os drinques gringos se aprimoram, a Caipirinha continua se fazendo do mesmo jeito? Tudo precisa melhorar. Thiago Toalha, o Barman Deprê, não vê nada demais na prova. Para ele, a indústria brasileira que lute para virar o jogo.

– Eles não têm cachaça no portifólio Reserve, então não têm que ficar focando nisso no campeonato. Enquanto a gente não der valor aos nossos campeonatos, não os tornar internacionais, não valorizar o que é nosso, isso vai continuar a acontecer. A gente precisa movimentar e alavancar o nosso produto ou aceitar que isso aconteça.

Ele também ressalta que por aqui já destruímos muitos clássicos da gastronomia do mundo afora em releituras nacionais, como citou em um de seus emblemáticos posts no Instagram: “O brasileiro: fez temaki com queijo, quebrou massa do macarrão, colocou ketchup na pizza, vinagrete e uva-passa no hot dog, espanhola no vinho e espuma no G&T. O gringo: Zacapirinha.”

– No começo, achei ofensivo, mas depois vi que não tem problema algum, já que a organização é de fora – diz ele, lembrando que muitas coisas boas já surgiram com trocas de seus ingredientes principais. – Algumas releituras até já fortaleceram a história dos próprios coquetéis, como é o caso do negroni.

Mas se a Zacaipirinha desceu bem para uns e ficou entalada na garganta de outros, ela transbordou para as redes sociais e, claro, virou meme. O bartender e influenciador Moisés Santos postou cinco coisas que você não deve usar em uma Caipirinha: soda cáustica, cimento, cândida, jiló… e rum.

Mais experiente, Zulu não faz coro com as críticas que vieram após a competição, principalmente nas redes sociais.– Na premiação, por exemplo, tinha um monte de bartender brasileiro, e ninguém falou nada. O que me choca é a plateia com um monte de brasileiro, um monte de pseudodefensor da cachaça. Por que ninguém levantou a voz para meter uma vaia e roubar a cena em vez de botar “videozinho” no Instagram depois? Daí ganhava palco no mundo inteiro como a nova Revolta da Cachaça dentro do World Class – reflete Zulu Aquilo era um Daiquiri montado, não era uma Caipirinha. Ao mesmo tempo, dos males o menor. Eu prefiro uma Caipiríssima do que uma Caipivodca.

O Mixology News também.

Confira a íntegra da nota enviada pela assessoria de imprensa da Diageo:

“O World Class Competition é um evento internacional organizado pela Diageo há 14 edições que reúne representantes de mais de 50 países. Para manter o equilíbrio e a isonomia da disputa, as provas são definidas pela matriz global da companhia com o objetivo de testar as habilidades dos competidores em desafios realizados com destilados que tenham distribuição em todos os países participantes.

Pela primeira vez em suas 14 edições, o desafio final do World Class Competition teve um propósito adicional: prestar homenagem ao país anfitrião. A caipirinha, além de ser um símbolo nacional, é um coquetel clássico e o primeiro do Brasil a ser incluído no catálogo oficial da International Bartenders Association (IBA),o que significa que sua receita, que leva cachaça como base, está eternizada. Dado que a cachaça Ypioca não está disponível em todos os países participantes da competição, solicitou-se aos finalistas que criassem interpretações deste coquetel utilizando outro destilado derivado da cana-de-açúcar, o Rum Zacapa.”

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