O que bebiam e como viviam os Charruas, Minuanos e Guaranis no pampa brasileiro?
A origem das palavras me fascina e ao mesmo tempo nos diz muito sobre a origem de seu povo com forte influência dos povos nativos no Brasil veremos como usamos palavras e muitas vezes não percebemos essa conexão ancestral que perpetua, por exemplo a etimologia de pampa que vem do dialeto Quíchua, significa região plana.
Os Quíchua são um dos muitos povos originários da américa do sul, povoaram diversas regiões do continente, hoje eles são encontrados no Peru e Equador. Pampa ou pampas são aceitos para descrever este bioma tanto em português quanto em espanhol, mas a palavra pampa é muito mais utilizada por ambos.
Povos originários
Quem vive no pampa e por ali garante sua subsistência é conhecido por gaúcho, independente do país que o bioma está, esse tipo de comportamento foi absorvido de povos originários, aliás a palavra ‘gaúcho’ tem como uma das origens a palavra “huachu” do dialeto Quíchua, que significa órfão ou vagabundo.
A origem do nome pampa a personificação do gaúcho foram absorvidos dos povos originários assim como alguns hábitos de vestimenta e consumo que vão do churrasco até o tradicional chimarrão do sul do país que possui entre muitos outros nomes dependendo da localidade e da forma de preparo.
Abaixo você pode ver a localização dos povos originários por volta do ano de 1500 no estado do Rio Grande do Sul neste mapa criado por mim e adaptado do Atlas histórico básico de ARRUDA, José Jobson de. Ed, SP Ática, 2001.
Os povos originários encontrados no sul do país são muitos, segundo o arqueólogo Sergio Leite em reportagem para a BBC “ No Rio Grande do Sul temos descendentes de Guarani e de Kaingang”. Mas infelizmente, assim como os biomas estão sendo dizimados e esquecidos, também ‘ignoramos’ quem fez e faz parte desta construção cultural que molda todo um comportamento da população, abaixo alguns povos originários entre muitos que vivem ou viveram na região do Rio Grande do Sul.
Os povos que ocupavam a região do pampa eram conhecidos como Pampiano, grupo que era formado por várias etnias como Minuano, Charrua, Guenoa, Mboane, Chaná e Jano. Viviam com coleta dos alimentamos nativos não praticavam agricultura, esses povos são os principais responsáveis por tradições alimentares que perpetuam até hoje o nosso conhecido churrasco que se estende a fama até Argentina e Uruguai surgiu com hábitos que os povos pampiano tinham de assar a carne em um espeto de madeira e em uma fogueira com feixes de lenha.
Os charruas eram nômades, viviam nos pampas, tornaram-se exímios cavaleiros depois da chegada de equinos trazido pelos espanhóis, ótimos caçadores usavam lanças, arco e flecha e boleadeiras.
Quase todo o povo foi dizimado, até pouco tempo eram tidos como extintos no Brasil e só encontrados na Argentina, os Charruas foram quase todos dizimados por não serem irredutíveis e não se subjugarem para as missões jesuíticas, a barbárie final foi quando os franceses expuseram os supostos últimos Charrua em atrações na Europa, mas ainda resistem e são encontrados na Aldeia Polidoro em Porto Alegre-RS.
Ao lado Chefe Charrua, litografia colorida de Jean-Baptiste Debret (1834 -1839)
Houve durante muito tempo a associação de que charrua e minuano seriam o mesmo povo, o fato é que os dois povos possuem semelhanças em suas culturas e localidade mas são povos distintos, eram localizados no bioma pampa no movimento conhecido como semi-nômades.
Os Charrua e os Minuano para muitos são as principais referências do estilo de vida dos gaúchos como sinônimo de vida campeira, o cavalo e o gado passaram a ter importância acentuada para ambos os povos.
Os primeiros equinos e bovinos foram introduzidos na América do Sul pela expedição de Solis (Navegador espanhol) em 1516 tornou-se um meio de consumo e transporte fundamental para os povos que tornaram-se hábeis cavaleiros, perpetuando até hoje no sul do país esta tradição campeira.
Infelizmente a maioria dos Pampiano como este grupo de povos ficaram conhecidos foram dizimados pelos espanhóis em uma série de conflitos que ficaram conhecidos como Guerra dos Charruas. Ao lado, o quadro O Minuano, obra do pintos Vasco Machado.
O que bebiam os Pampianos?
Os fermentados com mel de abelha nativa eram bem tradicionais em todas as nações como o povo pampeano não praticava agricultura, eles viviam muito mais de frutos, plantas e animais nativos.
Uma dessas bebidas era feito com o mel da vespa lechiguana, misturando com água resultava na fermentação no qual era consumida pelos povo que compreendiam os pampiano.
A maior nação indígena do Rio Grande do Sul possui muitos povos entre eles Carijó, que viviam perto da Lagoa dos Patos e também compreendiam os Guarani, Mbya, Ava-Katu-Eté, Nhandeva-Xiripa, Arachanes e Tapes, cada um com dialetos diferentes mas com alguns costumes semelhantes, foram os Guarani um dos povos que consumiam e disseminavam a erva-mate no sul do país do solo também tiravam a argila para produção de utensílios de cerâmicas, cultivavam milho, abóbora, mandioca, amendoim, feijão e algodão.
Abaixo, uma foto de uma artesã guarani kaiowa, clicada em 1949, por Egon Shaden.O que bebiam os Guaranis?
A erva-mate é uma história a parte, enquanto escrevo este texto tomo chimarrão e cada gole fico pensando o quão cultural isso representa para o povo gaúcho e o quanto ainda não valorizamos quem nos ensinou a consumir a erva-mate uma problemática histórica que visa minimizar a cultura nativa e exalta um viés euro-centrista assim como o resto do mundo nos é ensinado que o que vem da cultura eurocêntrica católica é bom o que não está neste padrões é ruim.
A história da erva-mate passa por esse mesmo filtro preconceituoso e estrutural, tomar chimarrão e compartilhar a bebida era visto como anti higiênico pelos europeus, para os povos que consumiam e compartilhavam era um momento de união e interação social, tradição que perdura até hoje.
A origem segundo o mestre em história José Humberto Boguszewski em seu projeto de dissertação Uma história cultural da erva-mate: O alimento e suas representações, conta que a erva-mate é uma planta nativa da região sul do continente americano. Da infusão de suas folhas, depois de devidamente processadas, são preparadas duas bebidas: o chimarrão e o chá. De acordo com Temístocles Linhares, “a América nasceu bebendo mate”. Para Romário Martins “o mais remoto uso da erva-mate prende-se aos quíchuas”, povos aborígines do Peru pertencentes à civilização Inca. Mate deriva do vocábulo quíchua “mati” significando cabaça, cuia, porongo. A palavra, portanto, usada para designar o objeto no qual se bebia, acabou mudada para mate e adotada pelos povos sul-americanos para designar a própria bebida.
Com a agricultura dominada pelos Guarani, surgiram alguns fermentados a partir dos grãos que muitas vezes eram consumidos em rituais, segundo a Dra. em Ciências Ambientais Kátia Mara Batista em sua tese saberes tradicionais do povo Guarani Mbya como cultura de referência: contribuição teórica à sociobiodiversidade e à sustentabilidade ambiental, alguns dos fermentados eram o Kaguyjy (bebida feita com milho, que deve ser mascado para fermentação e misturado com água – apenas as meninas de 13, 14 anos, que não atingiram a puberdade podem prepará-lo. Segundo os mais velhos, ao beber o kaguyjy, o Guarani está limpando seu corpo, deixando-o sadio).
Outra bebida fermentada chamada de Mapuitã Rykue é feita a partir do fruto de uma palmeira nativa chamada de jerivá ou palmeira-pindó (Syagrus romanzoffiana) consumida pelos Mbyá-Guarani.
Abaixo, foto de André Benites da ocupação Guarani Mbya em Maquiné.
Os Xokleng localizavam-se na região norte do estado, onde o cenário é composto por campos e florestas de araucárias. Já os Kaingang estão localizados mais ao estado de Santa Catarina e são um dos poucos remanescentes desta nação.
Viviam da caça e da coleta de pinhão e da agricultura possuem algumas tradições parecidas com os Guarani. A etnia Jê foi praticamente exterminada na luta contra os portugueses pela defesa de sua região.
A araucária (Araucaria angustifolia) ou o nosso pinheiro-brasileiro, pinheiro-do-paraná e o consumo de pinhão resistem até hoje na nossa cultura muito por conta dessa disseminação que os Kaingang fizeram a milhares de anos atrás, para se ter uma noção do tempo de cultivo uma árvore demora em média 40 anos para chegar em sua fase adulta, por conta de sua madeira de alta qualidade ainda hoje infelizmente está sob risco de extinção.
O pinheiro é encontrado na região sul e sudeste do Brasil, herdamos esta tradição de consumo de pinhão dos povos nativos. Por exemplo a palavra Curitiba, cidade que é capital do estado do Paraná, significa no dialeto Guarani “Terra de muito Pinhão”, muitas vezes nos nomes e hábitos que os costumes dos povos originários se fazem presente e nem percebemos.
Ao lado, uma foto do Cacique ‘Camrém’, líder dos Xokleng à época do contato com E. Hoerhan. A foto é de autoria provável de E. Hoerhan que está exposta no Acervo Arquivo Histórico José Ferreira da Silva (AHJFS), da Fundação Cultural de Blumenau.
O que bebiam os Jês?
O povo Kaingang além do domínio de agricultura também consumia frutos e grãos e faziam também seus fermentados alcoólicos um deles uma bebida chamada kiki feito com água, mel de abelha nativa e milho, bebido no Ritual Kiki ou festa do Kiki uma celebração ocorrida no começo do inverno que tem como intuito reverenciar e cultuar os mortos, os ingredientes do kiki são benzidos e postos no kõkei que seria uma árvore de pinheiro recém derrubada e cortada no formato parecido com uma canoa, o kõkei é enrolado com algo parecido com uma lona depois da fermentação que algumas referências citam de até 2 meses o kiki é consumido.
Segundo o portal kaingang a erva-mate consumida em um formato conhecido como chimarrão foi de invenção do povo Kaingang e não dos Guarani, polêmicas à parte, outra bebida consumida pelos Kaingang era um fermentado feito a partir do pinhão, uma semente importantíssima na dieta deste povo consumida de várias formas, a bebida conhecida como kyfe poderia ser feita de pinhão ou milho.
O povo Xokleng consumia uma bebida chamada Mõg fermentado feito a partir do miolo de xaxim ou samambaiaçu (Dicksonia sellowiana) , espécie de samambaia pré-histórica, o miolo era socado, misturado com o pinhão mastigado em um processo parecido com cauim e mel de abelha nativa, posto em um recipiente de madeira chamado de kakéj parecido com o kõkei Kaingang, com duração da fermentação até 15 dias, consumido em rituais das perfurações dos lábios dos mais jovens ou em encontros dos povos Xokleng que viviam separados em pequenas comunidades, atualmente os Xokleng habitam o vale do Itajaí-SC na terra indígena Laklãnõ. Na imagem abaixo é possível ver os kakej no chão, cerimônia de perfuração dos lábios Xokleng em foto de Jules Henry de 1933.
Com influência dos povos originários, europeia e africana, foi moldado os hábitos e costume do nosso país, e no sul do Brasil não seria diferente. Os espanhóis segundo Câmara Cascudo foram os primeiros europeus a pisarem no sul do país e interagirem com a cultura dos povos nativos presente na época.
Os povos nativos por sua vez também interagiam entre si algumas vezes amigavelmente outras nem tanto, por isso alguns hábitos e consumos de alguns alimentos não eram exclusivo de um povo. Com as características únicas que o bioma ajudou a fortalecer e a criar hábitos e tradições que perduram até hoje.
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