Crônica de Yvens Penna sobre a tradição do consumo da gengibirra no norte do país

O sol lança a primeira fresta de luz no quarto com 2 beliches na casa 13 da Rua José Serafim no Bairro do Laguinho em Macapá. É sábado e João desce da parte de cima do beliche que fica ao lado da janela do amplo quarto daquela casa que faz as vezes de uma república de estudantes. João cursa o 2º ano de Engenharia Naval na Federal do Amapá. Apaixonado por navios, caravelas e todo tipo de embarcação ele sonha um dia construir flutuantes que singrem rios e mares mundo afora.Normalmente João dá um tapinha num cigarro de maconha antes de pegar o rumo da Universidade mas dessa vez se limita a um pão francês esquentado no forno com manteiga, queijo e um café coado; afinal é dia de apresentar o trabalho de álgebra linear que vale como avaliação do semestre.

Durante o caminho de ônibus o jovem de 19 anos se divide entre a tensão da explanação do conteúdo e a excitação juvenil de viver o presente não num sábado qualquer mas naquele que precede o “Domingo do Senhor”, o primeiro domingo após o Corpus Christi e que marca o último dia de comemorações dos festejos do Ciclo do Marabaixo.

Fruto do choque da cultura quilombola com elementos católicos, as raízes do Ciclo do Marabaixo remontam aos negros escravizados que no século XVIII foram trazidos pra Macapá para trabalharem na construção da Fortaleza de São José.

Revoltados com as péssimas condições de trabalho a que eram submetidos muitos fugiam e se organizavam em quilombos. Nesses quilombos nasceu essa manifestação cultural que essencialmente é uma demonstração de fé através da dança, do canto (os ladrões, espécie de poesia oral musicada) e do consumo da gengibirra; batida feita com gengibre, açúcar e cachaça.

Ao chegar na universidade João se dirigiu até o departamento de cursos técnicos e logo na entrada foi parado por uma garota que perguntava onde seria a apresentação dos trabalhos de álgebra linear da turma ENF02. Era a turma de João que imediatamente se ofereceu para acompanhá-la. Cláudia, também estudante de Engenharia Naval, é uma manauara de 26 anos que pediu transferência da Federal do Amazonas e chegava para seu primeiro dia de aula.

Com um casamento recém terminado em Manaus ela resolveu migrar seu curso para Macapá, abrir uma franquia O Boticário no centro da cidade e recomeçar a vida. Torcedora do Boi Garantido, Cláudia é uma cabocla baixinha de olhos cor de mel e cabelos negros que escorrem até o meio das costas. Linda. Os 8 minutos de percurso até o auditório onde os trabalhos seriam apresentados foram o suficiente para João se apaixonar e envergar coragem para lhe fazer um convite: acompanhá-lo à noite até o barracão do Grupo Raimundo Ladislau para os últimos festejos do Marabaixo daquele ano.

Trabalho apresentado e um 9,3 garantido, João foi até Cláudia se despedir e combinar os últimos detalhes do encontro que ela havia aceitado. Às 19:30 se encontraram na frente da hospedaria que Cláudia se encontrava no bairro do Pacoval (vizinho ao bairro de João) e foram para o festejo. Há uma quadra de distância do barracão já se ouvia o som das caixas rufando, as vozes empostadas dos cantadores; já se podia ver as roupas floridas e as saias rodadas e sentir o aroma do tradicional caldo de carne, prontamente ingerido para preparar o corpo para uma noite de dança e gengibirra.

O clima no barracão era de êxtase. As caixas de marabaixo eram muitas e seu som reverberava alto por todo ambiente, o que facilitava as pretensões de João que para conseguir falar qualquer coisa com Cláudia precisava se aproximar rente ao pé do seu ouvido. Ela está encantada com aquelas pessoas, a música e todas aquelas cores.

 

Sobre a gengibirra interessante falar que até a década de 1940 era uma bebida fermentada através da água, mel e gengibre. A partir da década seguinte a cachaça começou a chegar de forma regular e mudou-se o processo para uma batida.

Tudo ali era impregnado de verdade. Ao pegar o segundo copo da gengibirra, João a convida para tomar bênção da Tia Biló, matriarca da família que mantém o barracão e filha do saudoso mestre Julião Ramos, um dos precursores da manifestação cultural do Marabaixo. Ao se aproximarem da Tia Biló para o beija-mão ela olha para o casal e fala diretamente para João: “Chamego de Marabaixo a bem querência lambe o tacho”, piscando de lado olho para Cláudia.

Já era próximo das 23 hrs e todos naquele barracão tocavam e dançavam embalados pela gengibirra, patrimônio imaterial do Brasil declarado pelo Iphan e amplamente consumido durante as festividades do Marabaixo que acontecem por semanas a fio.

Após Tia Biló ungir o casal o negócio já tava amarrado. João aproveitou uma levada de um batuque para abraçar Cláudia pela cintura e após um delicado beijo no seu rosto mirou certeiro e apaixonado na direção dos seus lábios. Beijo longo, macio e de um sincronismo russo.

O casal despertou na hospedaria de Cláudia e ainda no clima de benção de Tia Biló, Marabaixo e gengibirra só colocaram a mesma roupa do dia anterior para a cerimônia de derrubada do mastro no barracão que marca o final dos festejos daquele ano. Era o final daquele Marabaixo e o início da história de amor de João e Cláudia que vivem até hoje numa casa térrea na Av Ana Nery, perpendicular à rua da república que João vivia e onde criam um casal de filhos.

Primeiro beijo com sabor de gengibirra e com a benção da Tia Biló que cravou que “chamego de Marabaixo a bem querência lambe o tacho”.

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