Eu amo a vida boêmia. Larguei a sala de aula para me entregar a vida boêmia de corpo e alma ou, no trabalho e no lazer, na alegria e tristeza.

Enquanto mulher – este tipo de apresentação do humano no mundo que costuma ser bastante lembrado em todo mês de março – penso que em 2024 temos ainda desafios a encarar. E não, não acho que o maior deles seja a representatividade.

Comecemos por uma situação hipotética: um casal no bar pede um Cosmopolitan e um Hanky Panky. É fácil o garçom desavisado entregar o Cosmopolitan à mulher e o Hanky Panky ao homem. Eu já passei por algo semelhante estando dos dois lados da cena: tanto como cliente, quanto como atendente. Estereótipos são presentes e influenciam o modo como nos relacionamos com o mundo. Aqui, nesta hipótese, a associação é de que a mulher tomaria o coquetel mais doce e o homem ficaria com o mais encorpado, mais potente. Apesar de eu ter atendido muitos homens pedindo “caipirinha de framboesa bem docinha” e mulheres pedindo Dry Martini e apesar de Dry Martini ser o meu coquetel favorito, eu já cometi o erro de errar a entrega dos coquetéis prejulgando as escolhas com base do gênero.

Ainda é presente no nosso universo simbólico a ideia de que a mulher é delicada, gosta de coisas doces, suaves e o homem fica com as mais potentes. Credo.

Pensemos agora numa segunda situação. Uma mulher bartender está atendendo um grupo de homens, num happy hour após o trabalho. Eles pedem os coquetéis e apreciam. Alguns elogiam os coquetéis. O colega bartender homem pensa que estão elogiando os coquetéis como uma espécie de cortejo, pelo fato de ela ser mulher. Por um momento pode ser que até ela mesma se questione se, de fato, os coquetéis estão bons ou se só estão lhe fazendo um gracejo, tentando chamar atenção e criar alguma conexão. Aqui o gênero coloca em questão a autoconfiança da profissional em relação ao seu trabalho.

Simone de Beauvoir no final dos anos 1940 escreve que a mulher tem sempre a necessidade de provar ao mundo que ela pode estar ali. É como se estivesse sempre sendo subjugada, como valesse metade de um homem. Não há, no mundo contemporâneo, com acesso a estudo e com automação em diversos processos no mundo do trabalho, razões objetivas para tanto. Quer dizer, as mulheres estudam tanto ou mais do que os homens e a maioria dos trabalhos não requer força física para executá-los, de tal modo que, ambos os gêneros estão aptos. No bar não é diferente.

A coquetelaria reflete preconceitos e estereótipos de gênero da sociedade como um todo.

Bares chefiados, vencedoras de campeonatos, cartas assinadas e coquetéis executados por mulheres na barra não são exceção. São parte do conjunto. Hoje a mulher bartender tem em quem se inspirar – quando migrei de área, tive dois tipos de inspiração: Laís Ladrine, que na época me atendia no Frank Bar. Depois, conheci o trabalho da Michelly Rossi, então à frente do Fel e me encantei pela pegada séria, classuda e com drinques mais encorpados que ela apresenta. Mais tarde, tive contato com o trabalho irreverente e criativo da Chula e a trajetória da Talita Simões, uma das percussoras desta geração.

Em 2024, para a mulher que escolhe ser bartender, existem referências – e excelentes referências, a frente de bares, balcões, eventos, consultorias e pódios de campeonatos. Quando eu crescer eu quero ser a Vitoria Kurihara – eu já desejei secretamente.Os desafios que ficam são de ordem externa ao balcão. Dou exemplos. Desde que resolvi ser bartender, trabalho a noite. Óbvio. Amo a vida noturna e boêmia. Mas não gosto de voltar para casa. A solução para mim sempre foi gastar um percentual maior do meu salário do que a maioria dos colegas para morar próximo de meu trabalho ou gastar com apps de transporte. Não, eu não gosto da ideia de ter carro. E morar próximo do trabalho em São Paulo é realmente um privilégio. O que não deveria ser privilégio é ir e vir para o trabalho em segurança diariamente – isto é um desafio real a várias colegas do setor de alimentos e bebidas.

Outro exemplo. Assédio. Em fevereiro de 2023 no Estado de São Paulo foi criada a lei nº 17.621 que obrigada bares e restaurantes a prestarem auxílio às mulheres que se sintam em situação de risco. Na esteira desta lei estadual, veio a lei nacional nº14.786 criada em dezembro do mesmo ano. A discussão é ampla e renderia um doutorado, mas esta lei traz um avanço muito importante ao tema: ela objetivamente estabelece um ponto a partir do qual um ato se torna assédio: o não.

Não interessa se é uma mão sobre a mão, mão na coxa ou qualquer coisa além disso. Se ultrapassa a vontade de um dos envolvidos, é assédio.

Resolver questões aqui no balcão implica em resolver questões na esfera pública. Ainda que, aguentar homem bêbado te assediando talvez seja das mais insalubres das condições de trabalho e as vezes, a vontade é ter um dispositivo de choque para tornar o trabalho mais viável. Pois é.

Quer dizer, algo que até então estava restrito ao domínio privado, à vontade, ao desejo, ao acordo ou desacordo entre duas pessoas, agora está escancarado para o público e passível de intervenção externa: não é não. A partir do não é crime.

Enquanto frequentadora de bares e trabalhadora do setor que sou, vejo esta lei com otimismo. É uma tentativa de tornar os bares ambientes seguros para todas e todos. As pessoas têm o direito a diversão e à celebração. As leis aqui assumem o papel de nos livrar de um estado de selvageria e nos forçar coletivamente, a nos comportar como humanos. Hobbes sempre esteve certo.

Quando penso em perspectivas para a coquetelaria e para a profissionais do setor, penso que devemos trabalhar para fazer de nossos bares lugares seguros – a nós e a nossas clientes.

Espaço seguro para bebermos e sermos quem quisermos; para não sermos assediadas enquanto clientes ou enquanto trabalhadoras; para criarmos e exercermos nossa profissão sem sermos subjugadas por aparência e gênero. Construir este cenário é tarefa de uma sociedade inteira.

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