D. Pedro I, a Cachaça e a Independência do Brasil
Diz uma dessas lendas meio ordinárias que D. Pedro, ao tornar-se imperador, fazendo do Brasil uma nação independente, teria brindado com um cálice de cachaça. Não há, no entanto, relato que sinalize a veracidade dessa versão, apesar de sua verossimilhança. Cachaça e Independência caminharam juntas nas esquinas da História.
Texto escrito por Dirley Fernandes, jornalista e fundador do site Devotos da Cachaça.
Cachaça, no dia da Independência, devem ter tomado alguns dos dragões da guarda do imperador. Eles, que vinham de Santos, estavam numa venda perto do riacho Ipiranga, na entrada da cidade de São Paulo naquela tarde de 7 de setembro. Descansavam da dura subida da Serra do Mar, enquanto Pedro se aconselhava com o Padre Belchior e declarava, pela primeira vez, “cortados os laços entre Brasil e Portugal”.
Foi diante dessa venda, não mais que “uma casinhola” que, segundo o relato do capitão-mor Manuel Marcondes de Oliveira e Mello, ouviu-se o brado retumbante: “Independência ou morte!”.
Algum brasileiro bem pode ter ouvido o tal grito com um copo de cachaça na mão.
Naquela noite, Pedro – que a bem da verdade só seria proclamado imperador no mês seguinte – compareceu à Ópera, em São Paulo, onde celebrou a independência com a elite da cidade de então 25 mil habitantes.
Aquela plateia, no entanto, para quem Pedro executou ao piano a peça que se tornaria o Hino da Independência, era mais dada aos vinhos, conhaques e licores, em especial depois que a chegada da Família Imperial ao Brasil abrira portos e portas àquelas iguarias antes raras em terras brasílicas.
Mas a cachaça, à sua maneira, estava adentrando seu período de glória – o maior em sua história. A nova nação precisava símbolos, elementos de identidade que a distinguisse de Portugal. E a cachaça se prestava perfeitamente ao papel.
Produção não faltava. Os engenhos e engenhocas haviam se multiplicado no século anterior. Paraty, um entreposto entre a corte e as províncias de São Paulo e Minas Gerais, produzia 1.600 pipas (672 mil litros) por ano já em 1805 em 107 estabelecimentos e abrigava uma importante indústria toneleira.
Campinas contava com 93 destilarias. No litoral, desde Ubatuba até Cananeia, o número era semelhante. Nas freguesias rurais em torno de São Paulo, em especial Ó e Santana, a produção também era farta, a ponto de sair aguardente do porto de Santos em direção a Rio Grande, Montevidéu e Buenos Aires.
Em Minas Gerais, contavam-se mais de 4 mil alambiques e Januária, controlando o comércio pelo Rio São Francisco, despontava como grande cenro produtor tanto nos critérios de quantidade quanto de qualidade.
No entorno do Rio, cidade então com 60 mil habitantes, freguesias como Taquara e Inhaúma produziam fartamente, enquanto em Campos dos Goitacazes a produção de especializava, com cachaça denominando o produto mais vulgar e aguardente sendo referência para a bebida de maior qualidade.
A cachaça era importante produto da economia brasileira, destinada ao consumo interno e às trocas transatlânticas, imbricada com o comércio escravista. Tinha tudo para ser um símbolo de um país que nascia cheio de contradições, liderado por um monarca nascido em Queluz que se doía de ser chamado “brasileiro” por seus inimigos.
Cachaça e Independência em Pernambuco
A entronização do nosso destilado como símbolo brasileiro começara em 1817, nas lutas pela independência no Nordeste. Ali, o viajante Tonnelaire registrou que um empolgado padre João Ribeiro, quadro ao lado, celebrando o início da Revolução Pernambucana.
“Soou a hora da liberdade! O Brasil está liberto de seus tiranos!”, disse o malfadado clérigo, ao mesmo tempo que pedia “aguardente” e recusava o vinho de França e, claro, o Porto, para brindar à Pátria que ele supunha nascer naquele momento.
Produto genuinamente nacional, nascido das artes de fermentação indígena e europeia, da alambicagem ibérica, aprendida com os mouriscos, e abraçado pelos africanos e descendentes, a cachaça era consumida à larga pelas classes mais populares – escravizados, libertos, pequenos comerciantes e artesãos que formataram a cultura popular brasileira.
A cachaça, após a Independência, foi o elemento líquido na construção de uma identidade e de uma simbologia nacional.
A aclamação
Na capital do país – cidade com 80 mil habitantes em 1822, sendo 36 mil escravizados – 125 tabernas, botequins e comedores serviam pipas e mais pipas diárias de cachaça.
Os zungus eram os espaços preferidos dos escravizados. Mas a taberna era o mais próximo do local de encontro e convívio, com bebida e comida, que é conhecido hoje como botequim.
Eram lugares malvistos pelas classes dominantes. No dizer do memorialista Luiz Edmundo, “a taberna é o sorriso da plebe, o alívio da corja, pouso, diversão e vício do ébrio, do bandalho e do vadio”.
O chefe da polícia chegara a mandar que os estabelecimentos baixassem as portas às 22h para evitar ajuntamentos de negros. O medo de revoltas de escravizados era a maior preocupação nas cidades brasileiras da época.
Mas a cachaça já tinha entrado nos espaços mais nobres. No Palácio da Quinta, o destilado nacional encontrara em Carlota Joaquina uma consumidora contumaz. Vinha de Paraty para sua cozinha e aposentos pipas de cachaça que ela bebia misturada com frutas para aplacar o calor dos trópicos.
Mais tarde, o conde d’Eu se revelaria outro apreciador dos mais afamados.
A entrada da cachaça no Palácio é testemunhada por uma garrafa ornada com um colar de prata contendo o Brasão do Império e uma placa com o nome “Paraty”. A garrafa, no Museu Imperial de Petrópolis, deve ter sido usada muitas vezes por Pedro I e José Bonifácio, dois apreciadores de primeira ordem do destilado nacional.
E assim, na maior festa popular que celebrou a nova nação – a aclamação popular a D. Pedro I na capital do Império, a 12 de outubro – mais da metade da população da cidade acorreu ao Campo de Santana para saudar o imperador.
A festa duraria três dias na praça e nas ruas do entorno naqueles tempos que eram pródigos em feriados. O vinho de Lisboa – um vinho mais barato que se bebia diluído em água e que rivalizava com a cachaça no gosto popular – perdeu naquele momento a preferência no coração dos brasileiros para a cachaça.
Em tempo: logo, Pedro abdcaria e retornaria a Portugal enquanto a cachaça era sobretaxada com um “subsídio literário” de 7,5% sobre cada pipa, dificultando a vida do produtor. E começaria uma fase difícil…Mas aí já é papo pra outro dia.
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