Visitar o pai no trabalho exigia uma operação digna de cinema. Toda a logística ocorria no maior sigilo, como se fosse o transporte de um diamante muito precioso ou o encontro secreto entre um matador de aluguel e o seu contratante.
Mas Chico só tinha 4 anos – e um final de semana por mês para ficar com o pai.
Primeiro passo: mentiam para a mãe dele, dizendo que aquele sábado era um sábado de folga. Se bem que, talvez, a mãe do Chico apenas se fingisse de besta. Ela sabe, como toda gente também sabe, que na profissão do ex-marido não tem sábado. Pode até ter um domingo ou uma segunda, mas sábado não tem.
Segundo passo: preparavam uma cama improvisada na dispensa do bar, instalavam uma televisão em que só se via chuviscos e providenciavam, com a mesma presteza, uma reserva considerável de doces e refrigerantes.
Terceiro passo: o menino entrava no bar pelos fundos, coberto por um lençol escuro, para que nenhum cliente ou entregador de bebidas se deparasse com uma criança de 4 anos naquele ambiente carregado de álcool e conversa fiada.
Da dispensa, por uma pequena fresta, via o pai trabalhar. Gostava mesmo daquilo. Da roupa que o pai usava, de como ele batia a coqueteleira, do jeito que cortava as frutas e misturava as bebidas. Comparava o trabalho do pai com o de um cientista ou com o de um mágico. Mistura, sacode e abracadabra! Como é mesmo o nome desse? “Man-man-ta” – tentava repetir o nome do cocktail ou da cidade.Vez ou outra, o pai se virava e sorria, e dava uma piscadinha, e fazia uma careta ou, o que ele mais gostava, jogava a coqueteleira pra cima, fazia uns malabarismos e derramava o Bloody Mary de um recipiente para outro.
Chico ainda não tinha nenhuma vontade de provar o que o pai preparava, nenhuma bicadinha, o prazer dele era totalmente estético. Gostava das cores e da mágica. Do Mistura, sacode e abracadabra. Mistura, sacode e abracadabra. Mistura, sacode e abracadabra.
Admirava tanto a profissão do pai que não entendeu a confusão daquele dia em que a professora perguntou qual era o trabalho dele. Ué? Ele contou pra classe inteira e, de pronto, a professora desconversou, mudou o tema da aula e, dois dias depois, sua mãe estava dando explicações na diretoria.
O pior foi a mãe que, ao invés de se indignar, explicou que eles eram separados e que o novo pai do Chico era advogado (disse isso separando as sílabas para ressaltar a dignidade do “ADE-VO-GA-DO”).
Então, era advogado que Chico teria que responder da próxima vez. Embora ele ache barman mais legal.
Mas voltando à dispensa, a cada duas horas, o pai de Chico tinha uns minutos de descanso.
Então, ele ia até o garoto, contava umas piadas, perguntava do desenho na TV e reclamava dos clientes. “Você acredita que o sujeito pediu um Negroni sem Campari? Que imbecil, um Negroni sem Campari”. Chico não sabia o que era Campari. Acha que já ouviu sobre Negroni em alguma conversa do pai, mas adorou poder rir com ele de um imbecil que pediu Negroni sem Campari.
Na última vez que foi visitar o pai no trabalho, toda a operação para camufla-lo caiu por terra. A culpa foi de um Dry Martini. Não exatamente do Dry Martini, mas do cliente imbecil que pediu um Dry Martini – que não era o mesmo imbecil que pediu um Negroni sem Campari.Ao experimentar o Dry, o cliente disse: “Prefiro mais seco”. O pai do Chico, ainda com um sorriso no rosto, respondeu: “Deixa comigo”. Então, o pai do Chico descartou o Dry anterior e fez um outro, muito mais seco. Ao experimentar o novo Dry, o cliente reclamou: “Isso aqui é só gin gelado”.
Pronto, o pai do Chico perdeu a esportiva, pulou o balcão do bar e se atracou com o cliente no meio do salão. A briga não durou muito. O pai do Chico e o cliente foram interrompidos por um choro de criança.
Daí, baixou polícia, juizado de menores, direitos humanos, partido político e mais a mãe do Chico e o padrasto advogado (ade-vo-ga-do) do Chico.
O pai do Chico ficaria alguns meses sem poder ver o filho.
Era pra ser muito mais.
Só que um dia, um fim de tarde, a mãe do Chico flagrou o menino sozinho na cozinha. Ele brincava com dois copos encaixados, boca com boca, como se fosse uma coqueteleira. E Chico fazia direitinho, tinha jeito, técnica. E Chico viu a mãe que espiava da porta e perguntou: “Você quer um Mam ma tá”? A mãe do Chico chorou.
E no outro sábado, perto do final do mês, Chico pode voltar a visitar o pai no trabalho.
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