Fábula de Bar ou A triste sina de Ademir
Existe um acordo tácito e universal, ou pelo menos eu sempre achei que existisse, de que uma ex-namorada jamais pode passar a frequentar seu bar de eleição após o término do relacionamento.
Principalmente se a coisa acabou de um jeito meio ruim, que é mais ou menos como sempre acaba. Você pode tirar tudo da vida de um homem, mas não lhe tire o bar.
Quando você apresenta seu bar preferido a uma mulher, é quase como dar sua vida para que ela tome conta. Ao terminar, o mais digno que ela pode fazer é devolver – se não sua vida, pelo menos o bar.
Último refúgio dos desamparados, o balcão é terapêutico. Nada se acomoda melhor em um banco de bar do que um homem com uma dor. É preciso muita desfaçatez para que ela apareça por ali, com seu sorriso transbordando de todos os copos, como se frequentasse aquele lugar muito antes de você. E pior: com outro.
É realmente muita cara de pau, agora ela está explicando a esse babaca o que é bitter. Antes de mim, ela não sabia diferenciar uma angostura de um molho para salada.
Eu que apresentei esse bar a ela, venho aqui desde que havia o constante receio de que ele fechasse por falta de clientes, coisa que, ainda bem, não aconteceu.
Sentir-me desconfortável aqui é a agonia suprema. Nenhuma mulher tem o direito de transformar sua casa em um campo minado.
Tudo isso era o que Ademir pensava enquanto bebia lentamente seu Old Fashioned, tentando não encarar o casal do outro lado do balcão. Para isso, usou uma estratégia, que era fuzilar com o olhar os dois usando o espelho que refletia a imagem daquela cena aterradora.
Achava que nem era ciúmes propriamente dito, mas uma sensação de ter sido violentado, como se tivessem invadido o único terreno ainda imaculado de sua existência. Ali, naquele balcão, eles haviam dividido boa parte de sua vida em comum.
Ela passou a gostar do lugar tanto quanto ele que, por sua vez, passou a gostar ainda mais porque estava ao lado dela.
“Of all the gin joints, in all the towns, in all the world, she walks into mine”, a frase do Bogart em Casablanca era inevitável a essa altura. Ela estava tão impregnada nos pensamentos de Ademir que ele quase a pronunciou em voz alta.
Começou, então, a disputar uma espécie de desafio com seu rival, embora só ele soubesse que estava disputando. Se eles pediam um Negroni, ele pedia dois. Bloody Mary? Fitzgerald? Dry Martini? Dois. Dois. Dois.Já estava bastante alterado quando veio o golpe final, aquela torcida na faca já enfiada até o cabo em seu coração. Eles pediram um Sazerac. Até aí, tudo bem, era só ele pedir dois e seguiria na frente na competição. Mas havia um porém, sempre há.
Aquele rye whiskey na prateleira, exemplar solitário e disputado a tapa por todos os bares da cidade, havia sido um presente dele para o estabelecimento.
Ele tinha trazido de uma viagem incrível que havia feito com ela para Paris (Casablanca de novo, quanta ironia), no auge da paixão. Costumava se gabar de que, graças a ele, o bar podia oferecer um Sazerac original, cuja receita é com rye.
Leu nos lábios dela quando ela pediu “Faz com rye, por favor, e não com bourbon”, quase soletrando a palavra R-Y-E, e o som de sua voz parecia desenhar as letras no ar. Para aumentar o drama, só havia uma dose.
Ele não conseguiria pedir depois. Assim ele viu o derradeiro vínculo com ela ir parar na goela de um outro sujeito, a última gota de sua história juntos evaporar da garrafa. Claro que pensou em protestar, gritar que era um absurdo ela pedir isso bem na frente dele, brigar com os amigos do bar, dizer que eles deviam recusar esse tipo de pedido e etc. Mas calou.
Engoliu seco e pediu também um Sazerac. “Com Bourbon mesmo, pode ser”.
Foi o pior Sazerac que Ademir tomou na vida. Não pela mão do barman, que era ótima, mas pelo desgosto. Logo ele, que era fã do drink. E mais: havia feito uma viagem com ela para New Orleans, cidade em que a bebida foi criada, só para fazer o roteiro do coquetel: foram ao The Sazerac Bar, no hotel The Roosevelt; ao Carousel Bar, no Hotel Monteleone; mas onde mais se divertiram mesmo foi no despretensioso Tonic, onde a bebida era ótima, o preço bom, num ambiente descompromissado. Foi lá que ela lhe disse que fizessem um pacto: jamais iam tomar Sazerac com outra pessoa. Para firmar o acordo, é claro, tomaram mais um.
Ademir acordou no dia seguinte em casa, sem sequer lembrar quantos havia tomado ou como tinha voltado. O último, aquele com Bourbon, que desceu rasgando por dentro, feito todas as lembranças doloridas e remexidas dentro de seu estômago, foi sua última memória da fatídica noite.
Soube depois, pelo amigo e dono do bar, que ele ainda ficou bebendo um bom tempo, mesmo depois de o casal ir embora. Bebeu até quase dormir no balcão. O bar fechou e seu amigo o deixou em seu apartamento, que era bem ali, na rua de trás.
Dizem que a tristeza mata a ressaca. Talvez por isso Ademir acordou surpreendentemente bem. Seu desafio agora seria ter que se acostumar a uma vida sem ela, a uma vida de Sazeracs feitos com bourbon.
moral da história: nós nem sempre teremos Paris…ou rye whiskey.
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