A riqueza do povo Borari e o Tarubá, fermentado do Sairé
Estudei entre os anos de 1984 e 1999 em escolas do sistema de ensino privado da capital paraense. Hoje vejo com espanto o fato de ter feito parte da minha grade de conteúdo temas como a mitologia grega e em nenhum momento visitarmos a nossa mitologia. O fato dessa grade de ensino ignorar a cosmologia indígena diz muito sobre nós mesmos.
Ignorar a riquíssima relação e interpretação dos nossos povos originários com os fenômenos da natureza, os animais, a guerra, a vida e a morte aponta na direção da nossa viralatisse e de como a colonização se perpetua até hoje em nossas mentes. Recordo com constrangimento dos meus em como nos sentíamos inferiorizados quando alguém do sudeste do país se dirigia a nós como “índios”. Tomávamos como ofensa.
Em um show da Legião Urbana em Belém no ano de 1987 Renato Russo anunciou a canção “Índios” como uma homenagem aos ali presentes e teve que finalizar o show sob vaias e latinhas de cerveja arremessadas na direção do palco. Um caso para a psicanálise. Porém sou um otimista e creio que estamos evoluindo.
Fazendo o recorte da gastronomia vejo que os regionalismos são cada vez mais valorizados e os ingredientes locais assim como os saberes ancestrais de produção e manuseio de insumos cada vez mais passando por um processo de resgate. Isto na região amazônica dialoga na direção da valorização dos saberes de nossos povos originários; dos nossos povos indígenas tanto que o projeto Biomas do Brasil deste portal é um efeito desse movimento.
Como um apaixonado por coquetelaria é um prazer mergulhar no tema bebida, nossos povos originários e seus variados fermentados ancestrais; que se diferenciavam pelos tipos de ingredientes e técnicas de fabricação.
Há inúmeras referências ao consumo dos fermentados alcoólicos dos povos indígenas, as beberagens. O consumo de bebidas embriagantes era uma prática central na estruturação do cotidiano indígena e funcionava como um indutor de socialização fundamental. Era atrelado a diversos e significativos momentos da vida e dentro dele saberes eram postos em circulação, valores eram afirmados e a memória coletiva ativada. Características que conferem à beberagem características eminentemente educativas.
Como alguém criado entre Belém e Santarém, quero ilustrar a importância da beberagem no contexto da festividade do Sairé na vila de Alter do Chão. Acontece no mês de setembro e é considerada como a mais alta demonstração de amor a Deus do povo Borari.
O Sairé é a festa folclórica mais antiga da Amazônia brasileira com registros de mais de 300 anos.
Os Borari são um povo nativo do Baixo Tapajós e que passam por um processo de extermínio. Como quase a totalidade dos povos nativos eles sofrem com um modelo de reprodução de violência física e simbólica que atravessa o tempo. Uma violência que despreza o indígena marginalizando-o e submetendo-o a ser um “outro” diverso e inferior.
Um processo que retira deles sua indianidade e o transforma simplesmente em um “pobre” dentro da lógica do capital. Missões jesuíticas, colonização, cabanagem, ciclo da borracha, sentenças judiciais negando o direito de ser indígena e os Borari resistem. A própria festa do Sairé é resultado do das influências portuguesas. Nasce do sincretismo religioso do catolicismo trazido pelos jesuítas no século XVII e dos rituais Borari.
Numa Amazônia tão saqueada é lindo ver um povo preservar algo como o Sairé por tanto tempo. Há poesia nessa insistência assim como na delicadeza e singeleza dos gestos das apresentações, dos risos, da alegria e do sagrado que se manifesta em cada canto, palavras, fitas coloridas, palhas abertas, nos bolos de macaxeira e nas diversas goladas de tarubá.
O tarubá é uma bebida leitosa feita a partir da mandioca.
Ao se extrair o tucupi forma-se a massa do beiju que é logo posta para assar. Após assar deita-se a massa do beiju numa cama de folhas de bananeira aonde é umedecido com água, salpicado com as folhas do curumim e coberto com folhas de bananeira novamente. A partir daí a massa vai descansar por vários dias até que ocorra a fermentação. Dependendo do tempo de fermentação ele será alcoólico ou não. O tarubá alcoólico é reservado para dias mais festivos como no Festival do Sairé.Na essência o Sairé é uma cerimônia que emula o modo que os índios Borari, nativos da região, narram a chegada e a permanência dos portugueses. O rito religioso envolve cortejo, ladainhas, mastros, música e dança. Durante a procissão a figura da Saraipora, geralmente a pessoa mais velha da comunidade, leva o símbolo do Sairé (um escudo em semicírculo com três cruzes da Santíssima Trindade), acompanhada por foliões rezadores e rufadores que tocam e cantam.
Na beira do rio, dois mastros, um dos homens e outro das mulheres, são apanhados para serem levantados na praça. A derrubada do mastro, encerrando a festividade e é marcada pela ingestão de tarubá e muita dança. Tudo isso na vila de Alter do Chão, que na minha suspeita opinião é um dos lugares mais lindos da Terra.
Vida longa ao povo Borari e sua luta de resistência.
Que nos tornemos nortistas mais conscientes de nossa ancestralidade e do que nos torna únicos. O índio é o passado e principalmente o futuro. Penso que é urgente nos conectarmos com sua rica cosmologia e sistema de valores. O modo como ocupamos a Amazônia nos últimos 200 anos já se provou equivocado. Olhemos pro nosso lado.
Receba nossa newsletter com os melhores artigos do universo da mixologia.
Obrigado por se inscrever!