Qual é a canção mais identificada com o nosso destilado? Não pode haver muitas dúvidas: a marchinha ‘Cachaça não é água’ é imbatível.
Texto publicado por Dirley Fernandes, jornalista e fundador do site Devotos da Cachaça.
Qual é a canção mais identificada com o nosso destilado? Não pode haver muitas dúvidas: a marchinha ‘Cachaça não é água’ é imbatível, não obstante a cachaça seja tema recorrente na canção brasileira, como mote central ou citada com diversos valores simbólicos em sambas, marchas e até em cançonetas. Ela já começa a se tornar onipresente, o que se repete há 67 anos.
Já contaremos a história de ‘Cachaça não é água’ e do grande personagem que a compôs, um compositor baiano e jornalista tipicamente brasileiro.
Antes, porém, um registro sobre a gravação primerva que tem como tema a cachaça. A cançoneta ‘A Cachaça’ constava de um 78 rotações que contém o registro feito pelo grande astro da música brasileira daqueles tempos, Manuel Pedro dos Santos, mais conhecido como Bahiano da Casa Edison.
O santamarense (como Caetano, Bethânia, Assis Valente…) havia sido nada mais, nada menos que o cantor que gravara o primeiro disco prensado no Brasil, ‘Isso é bom’, em 1902. Em 1913, acompanhado de piano e coro, o astro do Teatrinho do Passeio Público e no Circo Spinelli gravou com empolgação a canção que tem como refrão: “Oh, como é bom beber, beber… Oh, como é bom provar”. Quem gosta de chiado, como o redator que vos digita, pode ouvir a raridade aqui.
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‘Cachaça não é água, de Marinósio Filho
Agora vamos à história da marcha ‘Cachaça não é água’.
Seu autor é um personagem fantástico, o baiano Marinósio Trigueiros Filho, compositor, jornalista, boêmio, malandro e batalhador. Nascido em Salvador (BA), filho do maestro da banda do leprosário da cidade, terminaria a vida em Londrina, como jornalista.
Dedicado, pelas vicissitudes do destino, à música regional baiana, Marinósio, nascido em 1914, criou, na década de 1940, um grupo ao qual deu o nome de afoxé, termo de origem afro até ali pouco conhecido e que só mais tarde seria utilizado pelo grupo carnavalesco Filhos de Gandhi.
Com o seu afoxé ou acompanhado pela cantora Diva Derley, viajou o país inteiro cantando sambas baianos de outros autores e de autoria própria, esses muitas vezes inspirados nos mais famosos Caymmi e Ary Barroso (por exemplo, o ‘Na venda do sapateiro’).
Não fazia muito sucesso, mas mantinha uma vida de artista, movendo-se sempre de cidade em cidade.
Nos anos 1940, ele adentrou o Uruguai. E, surpresa!, tornou-se um astro. Fez temporadas teatrais, inclusive ao lado do astro Ary Barroso, e gravou uma série de discos pela Sondor, maior gravadora do país platino.
O primeiro desses discos trazia o samba ‘Baiana me leva’ e a marcha ‘Cachaça não é água’, cuja partitura havia sido publicada no ano anterior, 1944, em São Paulo.
O disco foi um sucesso estrondoso no Uruguai, tendo vendido as 2 mil cópias da prensagem imediatamente.
Marinósio se envolveria numa briga com a gravadora e sairia do Uruguai um tanto quanto às pressas. Foi dar com os costados em Londrina (PR), para cantar em boates do ‘novo Eldorado’ e frequentar a zona de meretrício local, na qual se envolveria numa agressão a um policial, em 1948, indo parar no xadrez.
Logo a seguir, se tornaria jornalista, profissão das mais mal vistas na época e pronta para receber um aventureiro como Marinósio, que muitas vezes se apresentava como “Professor Marinósio”. Ele exerceria o ofício ao longo das décadas seguintes, até morrer em 1990 e mandar gravar em sua lápide a frase: “Aqui jaz, contra sua vontade, Marinósio Filho”.
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‘Cachaça não é água’, o escândalo
Em 1953, a sorte de Marinósio mudaria. A marcha ‘Cachaça não é água’ estourou nas vozes de Carmen Costa e do comediante Colé Santana. Era a campeã do concurso de marchinhas do carnaval daquele ano e era tocada na cidade inteira.
Só que os compositores que estavam recebendo os direitos autorais eram outros: Heber Lobato e Lúcio de Castro. Marinósio levou sua gravação uruguaia para o Rio e denunciou o plágio.
Escândalo!
Ouvido pelo jornal ‘A manhã’, Lobato foi taxativo: “Nunca estive no Uruguai e nem em Londrina. Se a música é parecida, azar de Marinósio”. Castro chamou o compositor baiano de oportunista: “Deve ser um louco”, como registrou o historiador Felipe de Camargo Melhado (Anti-heróis entre heróis – Marinósio Filho, boemia e jornalismo na Londrina do Eldorado).
Ao final da celeuma, no entanto, o presidente da União Brasileira de Compositores, o grande Ataulfo Alves, mediou um acordo. Marinósio ficou com 60% dos lucros da marchinha – que não eram e não seriam poucos ao longo dos anos. Os dois plagiadores levariam 15%, sob a justificativa de que melhoraram a letra da segunda parte. Ataulfo ficou com 10% e se tornou representante da música. Mirabeau, outro dos plagiadores, ficou de fora do acerto. Não era muito amigo de Ataulfo. Mais tarde, no entanto, ele faturaria com o tema etílico na marcha ‘Turma do Funil’ (1956).
Já Marinósio voltaria para Londrina, sempre se metendo em confusões e exercendo o jornalismo e a boêmia com intensidade. Não teria novos sucessos e não consta das enciclopédias musicais. Mas criou um hino para a cachaça. Pelo menos entre os devotos, todos devemos celebrar o nome de Marinósio Filho.
Ouçam a marcha na abertura do documentário ‘Devotos da Cachaça’, dirigido por esse editor que vos digita. Começa em 1:27 e as vozes são de Alfredo Del Penho e Pedro Paulo Malta.
“Você pensa que cachaça é água?
Cachaça não é água não
Cachaça vem do alambique
E água vem do ribeirão
Pode me faltar tudo na vida
Arroz, feijão e pão
Pode me faltar manteiga
E tudo mais não faz falta não
Pode me faltar o amor
(Disto eu até acho graça)
Só não quero que me falte
A danada da cachaça”
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