António Amaral Gomes, português apaixonado e conhecedor do nosso destilado e autor do livro “A Cachaça – A Paixão do Lado de Cá” enviou desde Lisboa no dia 13 de setembro de 2022 o texto abaixo.

Texto publicado por Dirley Fernandes, jornalista e fundador do site Devotos da Cachaça.

“Caro Dirley Fernandes,

Abri hoje, dia 13 de Setembro, o seu e-mail do dia 9 com a newsletter Notícias direto do alambique, onde estava incluída uma matéria sobre Cachaça e Independência.

Essa matéria motivou-me a escrever algumas palavras sobre o mesmo tema. Não consigo, contudo, deixar de abordar alguns fatos históricos.

Quem vive deste lado do Atlântico tem como destilados mais fáceis de abordar e beber o whisky e a vodka, que nasceram na Europa no final do sec. XV.

Outro fato curioso é que esses destilados nasceram no âmbito de espaços religiosos numa Europa que, na Idade Média, tinha mais de 1.700 mosteiros.Numa época em que tudo era escuro, na qual todos se fecharam nos seus feudos, apenas os mosteiros mantinham a sua intranet, por meio da qual mantinham um amplo campo de informação (vide o filme/livro Em Nome da Rosa).

Foi esse campo de informação que levou o conhecimento da destilação do Sul da Europa até ao Norte, caminho que começou com o povo a quem se atribui o conhecimento sobre destilação no Ocidente: os árabes, que se mantinham nas fronteiras do Sul da Europa, desde a Sicilia até a Península Ibérica.

A Irlanda e a Escócia foram o berço do whisky e o que hoje são a Polônia e a Rússia, o da vodka, todos ligados a mosteiros, tendo como matéria-prima a cevada (malte) a Ocidente e o centeio mais ao Oriente.

Outra significativa curiosidade é que as elites da época (por exemplo, o Rei James IV, na Escócia) apoiaram o fabrico desses destilados, reforçado pelo fato de que o czar na Rússia teve mesmo em certo momento o monopólio do comércio da vodka.

Em Portugal, Sá de Miranda (séc. XVI), homem de cultura, escreveu pela primeira vez a palavra cachaça, ao agradecer por carta o jantar que lhe tinha sido oferecido por António Pereira, Senhor de Basto (região ao Norte do país).

Cachaça, elite e escravizados

E a cachaça no Brasil, como começou?

Se os destilados já referidos tinham como apoio as elites locais, a cachaça no Brasil começou na classe social mais baixa, os escravizados.

Essa característica marcou e ainda marca todo o caminho do destilado do Brasil.

A cachaça aparece como forma de os portugueses, que já vivam no Brasil a partir do século XVI, substituírem o destilado que já conheciam de Portugal e que dificilmente obteriam vindo do outro lado do Atlântico.

Ao longo do tempo e com a intensificação das transações com as colônias, lembremos que o comércio para o exterior era monopólio da Coroa. A aguardente bagaceira vinda do colonizador encontrou um concorrente, fácil de obter na colônia e muito mais barato.

Aqui residem dois fatos importantes: um primeiro correspondente à proibição do fabrico da cachaça e o segundo, à impossibilidade de a cachaça ser exportada para fora do território colonizador.

Só o primeiro, como sabemos, não conseguiu vigorar e é por isso que no dia 13 de setembro se comemora o Dia Nacional da Cachaça, mas o segundo é ainda a atual justificação para que o rum seja mundialmente mais conhecido que a cachaça (o desenvolvimento dessa justificação fica para outro dia).

Desde a Inconfidência Mineira, não é difícil acreditar que a Cachaça era mesmo um símbolo à Independência, contrariando tudo o que vinha do colonizador.

No subconsciente do povo brasileiro esse símbolo manteve-se ao longo de muitos anos, mesmo quando os brasileiros negreiros constataram que o negro gostava mais do destilado que do fermentado que era o vinho vindo de Portugal, até aí usado como moeda de compra dos escravos. Quem sabe se, além de produzir mais efeitos, era também muito mais seguro no transporte por ser destilado do que um fermentado?

Quando chegamos a D. Pedro, temos que dizer que segundo alguns biógrafos o primeiro Imperador do Brasil produzia cachaça, mas não consta que o fizesse para obter lucro embora também haja quem diga que era proprietário de locais onde se serviam bebidas…

Também era frequentador de locais desse gênero, sempre acompanhado do Chalaça

Quando se diz que D. Pedro brindou à Independência, significa que esse brinde, se houve, não foi no dia 7 de Setembro, a haver regozijo, alegria, pela decisão tomada; talvez no dia da aclamação como Imperador e certamente por um conjunto de pessoas presentes, além do próprio.

Foi o que eu chamo A Vingança da Cachaça, proibida pelo rei de Portugal e louvada mais tarde por outro (futuro) rei de Portugal.

Como você disse no seu texto, a cachaça era bebida no Palácio e devia ser tomada por D. Pedro e por José Bonifácio.

Como se diz também no seu texto, a cachaça tinha entrado já no Palácio da Quinta antes mesmo do dia 7 de Setembro de 1822.

Carlota Joaquina foi protagonista da criação de uma bebida na qual se misturava a cachaça com frutas, precursoras das batidas.Mas, segundo a minha opinião e trazida pela Coroa quando foi para o Brasil, o que hoje se chama caipirinha é a adaptação do que já se tomava em Portugal como remédio contra gripes e constipações – um citrino, um açúcar e uma aguardente , neste caso, o limão amarelo, o mel e a bagaceira. O que aconteceu no Brasil? Uma adaptação!

O limão amarelo passou a verde, o mel passou a açúcar e a aguardente passou a cachaça e era também no Brasil um remédio. O gelo apareceu mais tarde, curiosamente, do Canadá.

Mas o que também se pode observar é que as elites ligadas à Coroa ou ao Império não tiveram significativa continuidade, após a saída de D. Pedro para a Europa, como consumidoras de bebidas mais fortes.

O que as elites beberam então após o vazio imperial?

É costume afirmar-se que se refugiaram-se no conhaque, recentemente exportado de França, e no vinho, neste caso o vinho do Porto e deve ser verdade.

Conclusão: perdeu-se mais uma ocasião para a revitalização da cachaça já sem o jugo do colonizador.

Um imposto direto, cobrado especificamente sobre a cachaça, surgiu em 1772, antes mesmo de D. Pedro nascer: o chamado “Subsídio Literário”, que se estendeu a todo o território português incidindo sobre vinho, aguardente e vinagre em Portugal e cachaça no Brasil e que teve como base a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal e a necessidade de pagar a novos professores, já que os jesuítas eram a base do sistema de ensino.

Lisboa, 13 de Setembro de 2022

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