Se você ainda não leu A História da Colher Bailarina, parte 1, parte 2, e parte 3, aproveite e conheça a saga do bartender Fernando.
Eu já passei por aquela rua umas 50 vezes e nunca reparei nessa portinha minúscula e espremida entre dos edifícios.
Sem placas, sem neon, sem um segurança na entrada, nada. Nenhum sinal de que ali houvesse um Speakeasy.
Fernando procurou uma campainha – não tinha.
Bati palmas – ninguém apareceu.
Argumentei que o bar ainda não devia estar funcionando e que a gente podia tentar de novo amanhã.
Mas Fernando estava determinado e disse que “estava sentindo” que sua colher bailarina estava lá dentro.
Ele acabou forçando a porta. Não chegou a ser um arrombamento – já que ela não estava exatamente fechada.
- Vamos – ordenou o Barman.
A curiosidade de conhecer um bar novo venceu o medo. Entrei. Fernando foi na frente. Uma luz baixa banhava o lugar. Meus olhos demoraram para se acostumar com o ambiente.
- Tem alguém aí – chamei.
Silêncio.
Começamos a tatear o espaço. Esbarramos em umas mesinhas e encontramos o balcão.
De repente, sons.
Era como se 100 barmans usassem os seus shakers ao mesmo tempo. Um som que lembrava uma cerimônia tribal, algo ritmado, ensaiado…
Mas o bar parecia vazio.
Quem primeiro viu um vulto atrás do balcão foi o Fernando.
Quase morri.
Atrás do balcão, começaram a surgir espectros. No começo, homens do século XV. Fernando viu o mesmo que eu – e como conhecia as lendas ao redor de sua colher foi me dizendo quem era quem.
– O especialista em herbologia mágica morto pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição. É ele, certeza, o primeiro dono da colher. Aquele do lado é o Cristóvão Colombo, o segundo dono…
Em pé no salão, apareceu um índio.
- Esse foi o terceiro dono da colher bailarina. Um chefe indígena que trocou o objeto com Colombo por oito virgens.
Feito um leão de chácara, apareceu o fantasma do ditador dominicano, o Rafael Leónidas Trujillo. O monstro sacou uma arma e disparou tiros em nossa direção. Os tiros se desmanchavam sem nos atingir.
- Eis o quarto dono da colher – explicou o Fernando.
De repente, vejo Fernando cair de joelhos e murmurar: “mamãe”.
Até onde eu conheço da vida de Fernando, aquela era a mãe dele. A mulher responsável por trazer a colher bailarina para o Brasil.
Atrás dela, a imagem de um homem que deve ser o pai de Fernando, o velho Olavo.
Fernando tentou abraçá-los, mas pai e mãe de dissolviam no ar.
- Por quê, mãe? Por que, pai? – perguntava o barman.
Rita de Cassia olhou para o filho e disse: “Queria que você preparasse aqueles Manhattans incríveis para os nossos convidados”.
Fernando olhou ao redor e viu os fantasmas se acomodando nas cadeiras. Além disso, convidados de carne e osso também entraram no pequeno salão: um time de lutadores de sumô, Dom Lino, Jef Zum e outros barmans da cidade.
Uma luz se acendeu sobre o balcão do Speakeasy. Bebidas, bitters e umas 200 colheres bailarinas diferentes estavam à disposição do Fernando.
- Vai, filho! – disse o fantasma de Olavo.
Fernando hesitou. Espíritos, lutadores de sumô, barmans começaram a aplaudir para incentivá-lo. Eu, mesmo apavorado de medo, fiz o mesmo.
Então, Fernando foi para trás do balcão e observou a coleção de colheres.
- Qual delas?
-
Não importa! – disse de um jeito firme o pai-fantasma.
Fernando respirou fundo, fechou os olhos, e pegou uma colher bailarina qualquer. Concentrando começou a preparar, de forma frenética, seus famosos Manhattans.
Foi uma cena bonita de se ver. Saíram mais de 30 Manhattans. Todos perfeitos. Tomei dois. Só o Cristóvão Colombo bebeu mais do que eu.
No fim, Fernando foi aplaudido. Os fantasmas foram desaparecendo furtivamente. Os lutadores de sumô e os barmans convidados deixaram o espaço respeitosamente. Eu também tinha que sair. Mas resolvi tomar uma dose de um Rye uísque que estava no balcão. Assim, pude ver o que aconteceu depois.
Mãe e pai de Fernando se aproximaram dele. O pai fez um gesto com a mão e a famosa colher bailarina apareceu no ar.
- Aqui está ela, filho – disse o pai.
Tremendo, Fernando pegou a colher nas mãos – que, ao contrário de seus pais, era algo sólido.
- Filho, você fez 30 Manhattas perfeitos, 30 drinques incríveis sem essa colher bailarina – afirmou a mãe.
Fernando ouvia com atenção.
- Você não precisa mais dela. A beleza dessa colher é o conhecimento que ela contém. Você já aprendeu com ela. Agora, é hora de deixar que a colher continue sua história, continue seu legado, que continue seu caminho pelo mundo, que continue cumprindo sua missão – Falou o pai.
-Mas…
Você é quem sabe… – disse a mãe.
Os dois espíritos desapareceram no ar.
A colher bailarina caiu no chão.
Fernando recolheu-a.Quando saímos do bar já era dia. Fernando andava calado, com a colher bailarina na mão esquerda. Eu não quis quebrar o silêncio dele – e fiquei quieto também.
Quando cruzamos uma esquina, um vira-lata de grande porte tirou a colher da mão de Fernando - correndo com ela entre os dentes, como se fosse um osso.
Fiz menção de correr atrás.
- Deixa – disse Fernando.
A colher bailarina foi embora.
….
Horas depois, longe dali, o vira-lata se deitava na porta de um bar.
Um garoto de uns 20 anos chegou com um currículo embaixo do braço. Antes de bater na porta, brincou com o cachorro que estava relaxado no chão.
O menino viu a colher ao lado do cão.
E pegou o objeto.
FIM.
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