Proibir a cachaça é coisa que se tentou várias vezes nos últimos 400 anos. Uma dessas ocasiões foi em 1966.

Texto escrito por Dirley Fernandes, jornalista e fundador do site Devotos da Cachaça.

O Brasil já vivia havia dois anos sob um governo ditatorial. Porém, o regime ainda não havia endurecido de vez, o que aconteceria em 1968, com o AI-5. No entanto, algumas facetas autoritárias do regime, como o moralismo e a inclinação pela tutela de todos os aspectos da vida do cidadão, já eram prato do dia, nem tanto por iniciativa dos generais, mas dos famosos “guardas da esquina”.

É claro que sobraria para a Cachaça, que chegou a ser vetada em bailes de Carnaval, vetada nas favelas cariocas e a correr o risco de ter sua venda em doses proibida em todo o território nacional. 

Em 1º de fevereiro de 1966, Dercy Gonçalves, comediante já então com 30 anos de carreira, teve a apresentação de sua peça Cocó My Darling interrompida por ordem da Censura antes do segundo ato por conta de uma brincadeira com o embaixador… do Peru.

Sinais dos tempos. Logo sobraria para a cachaça. No dia seguinte, no Ceará, o Departamento de Segurança anunciou a proibição do uso de biquini e outros trajes imorais durante o Carnaval. Além disso, vetou totalmente a venda de cachaça na rua. Cerveja podia; cachaça, não.

No Rio de Janeiro, a proibição da cachaça atingiu os bailes de Carnaval. O secretário de Segurança da Guanabara, general Dario Coelho, autorizou nos eventos do tríduo momesco daquele ano a venda de uísque nacional e importado e champagne nacional e importada, além de, claro, cerveja. E vetou a venda de “cachaça, caninha ou mata-bicho (um sinônimo para a cachaça que alude a seus “efeitos desinfetantes”).

Em outubro daquele ano, a direção do Departamento de Fiscalização da Guanabara também resolveu fazer sua parte nas iniciativas de proibir a cachaça. O alvo foram as tendinhas tradicionais das favelas cariocas. A repartição proibiu que esses estabelecimentos vendessem qualquer bebida alcoólica – com exceção, novamente, da cerveja, bem menos acessível para os moradores daquelas áreas.A lei, é claro, não “pegou”. A maior parte das tendinhas funcionava sem licença nenhuma e mesmo as licenciadas preferiram enfrentar uma possível fiscalização a perder clientes, como informou o jornal O DIA.

Proibir a cachaça a qualquer hora

Mas o maior ataque à Cachaça veio com um projeto do deputado Eurico de Oliveira, do MDB da Guanabara. O parlamentar, jornalista de profissão e morto em 1998, tinha ideias muito criativas. Em seu mandato, entre 1963 e 1967, ele apresentou a proposta de anexação das Guianas pelo Brasil. Outra proposição do deputado foi a “importação” de um milhão de portugueses para povoar a “selva amazônica”.

O deputado, claramente, tinha uma fixação em questões de raça e nacionalidade. Na proposição que apresentou à Câmara dos Deputados em 30 de março de 1966, ele afirmou que o Brasil era um “país de formação étnica incompleta”.

Essa era uma das justificativas para seu projeto: a “proibição de bebidas alcoólicas distiladas (sic), licores, aguardentes, cachaças e seus similares, a varejo, em copos, cálices ou outros recipientes a qualquer hora”.

A pena para quem desobedecesse ao decreto era o “fechamento comercial através de processo de rito sumário”.

No artigo 4º, as exceções revelavam o preconceito contra o destilado nacional: ‘Excetuam-se desta proibição o chope, a cerveja e os vinhos de mesa”.

Na justificativa do projeto, o deputado diz que “qualquer povo, mesmo os de raça mais consolidada”, sabe da devastação do álcool, por isso estabelece restrições de horário para a sua venda.

O parlamentar pinta uma cena vívida e repleta de xenofobia da relação entre o cliente e o dono do bar, muitos deles portugueses ou espanhóis na Guanabara daquele tempo:

“Dois homens separados por uma armação de madeira chamada balcão. Do lado de dentro, em pé, nédio, bem nutrido, com a burra abarrotada de dinheiro brasileiro, o vendedor de cachaça, algumas vezes até estrangeiro; do lado de fora, alcoolizado, ás vezes caído, inconsciente (…) o brasileiro consumidor do veneno, da implacável cachaça. É preciso que alguém venha ao socorro desses patrícios. Cachaça também é prego de caixão de defunto”.É claro que os produtores de cachaça reagiram ao projeto. Afonso Mendes Souza, que destilava em Curvelo (MG), segundo o registro do Jornal do Brasil, chamou a proposta de “inoportuna, imbecil e contrária aos interesses nacionais”.

Para nossa sorte, a proposta de proibir a cachaça em doses não foi para a frente. Acabaria arquivada na Comissão de Constituição e Justiça em 14 de abril de 1967.

Cinquenta e quatro anos depois, segue a luta contra o preconceito em relação à cachaça – que, não raro, é decorrência do preconceito contra o que é popular e brasileiro – e a desinformação, que desconsidera que “álcool é álcool”.

Não custa lembra que uma tulipa de chopp (330 ml) e uma dose de cachaça (30 ml) contêm o mesmo volume de álcool: 10 g. Consumir consciente e moderadamente depende da atitude individual. Ao Estado, cabem campanhas de conscientização e tratamento isonômico para todas as bebidas alcoólicas.

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