Trabalhe enquanto eles dormem, cuidam dos filhos ou têm um instante de lazer e bem estar.

Meu caro Simone Caporale,

Você é para mim uma grande inspiração e me proporcionou uma das noites de bar mais incríveis da minha vida no Artesian Bar em 2016, meu respeito pelo seu trabalho é imenso, logo gostaria de dizer que esse texto não é sobre você necessariamente, mas para os jovens bartenders que nos acompanham.

Hoje você homenageou o grande Jeronimo Vaquero, bartender há mais de 45 anos e proprietário do Boadas Cocktails, um dos mais importantes bares espanhóis de todos os tempos. Sua homenagem é mais do que justa, e a trajetória de Vaquero é indiscutivelmente rica e merece ser engrandecida pelo esforço de um homem em seu tempo, hábitos e costumes.

Mas os tempos mudaram, ainda bem.
Ainda que fosse apenas um desabafo pessoal, essa sua mensagem impacta milhares de bartenders em todos o mundo, muitos dos quais, se inspiram em seu trabalho e eu sinto que o bom debate acerca da saúde mental e das condições de trabalho precisa ser feito aqui.

Essa ideia de que um “VERDADEIRO BARTENDER” precisa trabalhar 12 horas por dia ou ainda trabalhar desde os 15 anos é um conceito tão sufocante aos ouvidos dos jovens bartenders.

Nem se quisesse a nova geração poderia trabalhar “desde os 15 anos”, pois as leis não mais os permite,  o que já torna essa primeira meta desigual e inalcançável.

Trabalhar 12 horas por dia é trabalhar 50% de uma vida inteira.
Trabalhar 12 horas por dia é trabalhar 75% de todo o tempo acordado, sobrando apenas 4 horas para atividades corriqueiras como banho, alimentação, convívio social e afazeres cotidianos.

Sabemos que a vida não foi feita para isso. Tenho certeza que nem eu nem você desejamos isso para nós mesmos hoje, quiçá por mais de 40 anos.

Cinquenta anos atrás infelizmente a sociedade permitia ver homens trabalhando fora e mulheres trabalhando em casa, permitia pais que não viam os filhos mais que 4 horas por semana, nem frequentavam um parquinho ou reunião escolar ou sequer trocavam fraldas.

E os tempos mudaram, ainda bem. Toda criança merece ter um pai para conhecer.

Uma outra questão relevante é que Vaquero além de bartender é proprietário do bar, o que torna ele centro da empresa e com diferentes interesses de um funcionário comum de um bar, como a grande maioria dos bartenders que nos seguem.

Romantizar o esforço desumano, sobrenatural e de produtividade excessiva, mostra apenas a face mais cruel do liberalismo, do estresse, da hiperatividade, do burn-out, da ansiedade e da depressão que asssola nossa geração.

Ano passado lí o brilhante “A Sociedade do Cansaço”, de Byung-Chul Han, livro curto que altamente recomendo a todos. O livro trata sobre os efeitos colaterais do discurso motivacional que crescem a cada ano onde a sociedade educacional e repressora descrita por Michel Foucault perde espaço para a sociedade movida à violência neuronal, um dos pilares do modelo de sociedade do desempenho.

Justamente por não conseguir encontrar um limite, bartenders workaholics costumam chegar ao nível máximo de esgotamento criativo, físico e mental. A obediência, antes externa devida às instituições e patronato, hoje se desloca para dentro e é movida pelo “comando de sí mesmo”, pois a positividade de “poder” é mais eficiente do que a negatividade do “dever”.

Explorando a sí próprio, carregamos o sentimento de “liberdade”, mas nos tornamos reféns da autoexploração, que é mais eficiente que explorar o outro. Infelizmente, o explorador é ao mesmo tempo o explorado e assim agressor e vítima não podem mais ser distinguidos.

Ao primeiro sinal de “infarto psíquico”, toda a culpa recai nos ombros do próprio comandante de sí mesmo, que por vezes se “esforçou pouco”, ou “não deu o que precisava” ou ainda ” dormiu enquanto outros trabalhavam”.

Em geral, vivemos um período em que poderíamos trabalhar menos e ganhar mais, mas a ideologia da positividade opera uma inversão perversa: nos submetemos a trabalhar mais e a receber menos, tornando muitos de nós depressivos e fracassados. Yes We Can Uberizar Tudo.

No Brasil, meu país, possuímos 32% de portadores da sindrome de burn-out na população economicamente ativa, perdendo apenas para o Japão. Infelizmente eu mesmo já estive nesse lugar em 2017. Caminhava como um mendigo pelas ruas do centro de São Paulo e dentro de mim carregava o sentimento de “o que mais eu deveria fazer para alcançar o inalcançável?“. Esgotamento, indiferença e descontentamento profissional.

São essas pessoas, assim como eu, que precisam buscar na terapia psicológica e no conforto familiar uma voz interna que diz “calma, está tudo bem ir no seu tempo e vai dar certo como tiver que ser.”

São essas pessoas que merecem o direito de poder novamente se perguntar:
“Quem sou eu? Quem é você? O que cada um de nós veio trazer de bom para esse mundo?”
Não. Não precisamos ser seduzidos pelo mantra de viver um sonho alheio empacotado.

E assim, aos poucos se vão as tardes de domingo, as manhãs de caminhada, o passeio pelo museu, o ócio criativo. Nos viciamos em trabalhar mais. Render mais. Nunca menos. Menos é pouco.

Perdemos a compaixão e empatia por nós mesmos.
Passamos a ser escravos de um transtorno da personalidade que nos autopromove como durões e competente. E assim produzimos mais e melhor. E de repente…. produzimos pior.

Trabalhar demais tem nos tirado coisas importantes e valiosas de todos nós desde sempre.

Precisamos ter a compreensão de que é necessário incentivar novas formas de nos relacionarmos no trabalho, respeitando os limites de cada um e questionando o poder financeiro das instituições.Querido Simone, volto a dizer com grande respeito, esse texto não é sobre você ou Jero, e sim para aquele bartender que está nos lendo aqui e nunca pode nos compartilhar o fato de não conseguir dormir por ansiedade ou insônia.

Caro Jero, meu muito obrigado pelo seu legado, sua entrega à profissão e paixão pela hospitalidade. Que possamos nos debruçar ainda mais em seu legado e honrar sua carreira.

Entendo que esse não é um manifesto anti-trabalho e meu interesse aqui é ampliar o bom debate acerca da saúde mental e condições de trabalho do mundo moderno pós Revolução Industrial.

É um pedido de socorro aos gestores de bar e empresários, para que o esforço de Jero Vaquero faça parte de um passado remoto da história da nossa profissão.

O próprio Nietzsche nos alertava pela importância de se contemplar: “Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto. Assim, pertence às correções necessárias a serem tomadas quanto ao caráter da humanidade fortalecer em grande medida o elemento contemplativo”.

Que a nossa geração possa gozar do direito ao lazer, ao silêncio, a apreciar o bom e o belo gargalhar de uma criança, um fim de tarde na natureza com as pessoas que amamos, o benefício de uma atividade física e a companhia de boas amizades.

Que a qualidade de vida, o cuidado com a saúde e o entendimento do bem estar e equilíbrio na vida sejam nossos nortes para uma sociedade mais próspera e igualitária.

Que todos os seres sejam felizes, que todos os seres vivam em paz.

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