A Vida de um Single Malt, crônica etílica de Gilberto Amendola
O tempo é líquido. E o uísque tem a metade da minha idade. Eu era tão jovem quando ele ainda era um grão. Já estava na faculdade, já tinha pelos na cara e uns amores bestas. E ele ainda era um grão.
E enquanto eu aprendia que a vida é uma ressaca atrás de outra ressaca, o uísque envelhecia sem pressa. Éramos dois calendários que corriam em raias diferentes, agendas que não batiam e vidas separadas por um continente.
Quanta coisa precisou acontecer pra que eu chegasse até você?
A vida dentro do barril de Jerez pode ser tão sufocante quanto esse apartamento. Mas a solidão de um single malt não tem comparação. Tem uma retidão, uma disciplina e uma falta de ambição que só os sábios podem ter.
O uísque sabe esperar.
Ao se mudar para uma garrafa, ao viajar de navio até esse país confuso e tropical, ao ser colocado em uma prateleira alta e perigosa, ao passar por mãos trêmulas e descuidadas, ao custar quase um salário mínimo…
Ao se mudar para minha casa.
Belo presente de casamento. Dado pelo amigo mais próximo. Um presente que não abri por dois anos. O tempo que durou a nossa relação. Agora, sem você, me veio essa ideia de libertar o uísque como quem liberta um gênio de sua garrafa ancestral.
O tempo é líquido. E o uísque tem a metade da minha idade. Vou beber com parcimônia. Com a insegurança de um primeiro encontro. Vou beber em pequenos goles, girando o copo, sentindo o aroma, reconhecendo certas propriedades e degustando-o.
Sou um velho esnobe. E o uísque tem a metade da minha idade.
Mas o que dói é saber que quem continua envelhecendo sou eu. Vou seguir contando o tempo, fazendo contas para que eu me evapore sem poesia.
Logo, vou ter o triplo da idade desse uísque.
O tempo é líquido.
Mas vou guardar um restinho na garrafa.
Sim, da vida, vou guardar um restinho.
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