Um bartender que virou mixologista? Como assim?
Mudança nunca é fácil. Se adaptar a novas rotinas, mesmo que para melhor, é trabalhoso. Mas viver a vida toda fazendo somente uma coisa, mesmo que ame, é preguiça de encarar mudanças. Aliás, quando mudamos, sempre contribuímos com novos conhecimentos e trocas de experiência com o mundo. A mudança é necessária para qualquer processo evolutivo, seja o que você escolher para seu futuro. Quero dividir com você quais foram as principais mudanças positivas e negativas de ir para a indústria:
1 | Compreender que a empresa é muito mais complexa e maior do que você imaginava
Eu demorei uns 3 meses para entender como a indústria funcionava. Estou a quase dois anos e ainda descobrindo coisas novas sobre o mecanismo. Cada pessoa tem uma verba destinada a um tipo de projeto para cada marca.
Até você entender que não basta só ter uma ideia e dinheiro, você passou um ano por lá. Acredite, tudo que eu pensei que poderia fazer, e o que vocês pensam é mais complicado do que parece.
Um projeto dentro do bar se desenrola em um mês. Eu planejo minhas ações um ano antes.
É muito diferente e cuidadoso o processo.
2 | Entender como o negócio funciona e como a máquina gira
Atrás do bar, por mais estudioso, talentoso e lucrativo para seu bar, não, você ainda não vai entender o negócio. Acho até que esse aprendizado é fundamental na formação de um bartender. Aprender o negócio. Bar não é só paixão.
É claro que alguns bares conseguem sobreviver sem a ajuda de grandes indústrias, mas esses são raríssimos. Contratos e exclusividades fazem bem para o setor, ajuda grandes endereços a sobreviverem em tempos como o de hoje. Entendo que você bartender faça vista grossa para isso e se sinta limitado. Mas você bartender precisa entender (como eu entendi e me senti um tapado no passado) que as marcas querem e precisam de visibilidade. Poucas ou nenhuma vez veio até mim um projeto diferenciado que viesse através de um bartender que desse um retorno bacana de visibilidade. Sempre ouvi “vocês deveriam fazer….”, como se a pessoa fosse altamente integrada ao cotidiano de uma grande empresa. Seja menos negativos e aproveitem mais as oportunidades.
3 | Abandonar o balcão (lado bom e ruim)
Minha coquetelaria sempre foi simples, baseada na estrutura de coquetéis clássicos com apresentação sofisticada. Porém acho que sempre me destaquei no balcão pela hospitalidade. O dia-a-dia com novas pessoas, novas histórias, novos amigos, contato com as pessoas se divertidas e interessantes me faz muita falta até hoje.
Assim como, mesmo sabendo o que preciso fazer, devo estar bem enferrujado para voltar a uma rotina dessas. Para matar essa saudade, sempre que posso trabalho uma noite em algum balcão de algum amigo (convidem! Convidem!) e meu sorriso instantaneamente volta ao rosto (mesmo que tortinho agora). Pois antes de tudo eu sou bartender, e sempre serei, mesmo não estando hoje atrás de um balcão, mas se um dia eu não estiver na indústria, é para lá que vou querer voltar.
Porém também tem a parte boa: Acesso a pessoas que não tinha antes, ter ferramentas para uma formação melhor, ver a luz do sol, ver meu filho crescer, ter finais de semana e feriados….Sei que esse não é o target de muita gente. Sua cabeça falará alto o que você deve fazer até o dia que seu corpo começar a gritar.
Ainda não estou nessa fase, mas aproveitei a oportunidade que me foi dada para curtir mais a vida e aprender novas habilidades que me ampliam a visão para minhas funções. Como toda decisão tomada na vida, existe o lado bom e ruim. A verdade é que nunca é ruim mudar e aprender coisas novas.
4 | Preparação para uma nova fase
Não quero ser arrogante, mas hoje me posiciono como um mentor. Formei mais de 800 bartenders em minha carreira (e vai contando), entre especializações e formação básica. Acredito que nem todos se tornaram bartenders mas criaram novas habilidades. Meus sonhos quando eu era bartender era ser um profissional famoso, apresentar um reality show e ser eleito o melhor bartender do mundo. Looooonge da realidade…rs.
Mas não importa a meta que você tenha, só alcançará se você se preparar. Hoje meu sonho mudou: assim como meus grandes amigos da indústria, concorrentes ou não, meu lema é deixar uma história de transformação da coquetelaria brasileira para os futuros bartenders e se possível ter esse reconhecimento lá na frente. A visão que a indústria me dá hoje do mercado me permitiu perceber o que realmente um bar precisa para ter sucesso (financeiro, reconhecimento, manutenção e sobrevivência) e o que falta para os bartenders aqui no Brasil, pelo menos em São Paulo que é um mercado que hoje eu conheço bem. Eu estarei preparado para abrir meu bar, ou minha escola em um novo estágio da vida (que está longe tá? Não adianta mandar currículo). Se preparar para uma nova fase é uma coisa que nunca foi discutida na profissão. Um bartender que se aposenta, o que ele fará? Como ele pode contribuir? Ou como saber a hora certa de encerrar a carreira? Precisamos estudar a caminhada a longo prazo para atingir os nossos sonhos.
5 | Estudo
A agenda de um mixologista é muito flexível, esperando-se dele os resultados das metas estipuladas. Se organizando bem, acaba sendo uma oportunidade para ter aquele tão sonhado tempo para estudar. Eu tenho um dia da semana que geralmente faço minhas funções administrativas e depois estudo. Em dois anos de indústria eu li mais livros do que nos 17 anos atrás do balcão. Essa flexibilidade me permite produzir nas horas em que minha cabeça funciona melhor, quando tenho mais ideias. Me possibilita criar novas habilidades (falei de novo, mas gravem isso), sair da zona de conforto e agregar perspectivas diferentes ao meu trabalho e vida pessoal. A indústria também lhe dá de bandeja inúmeras ferramentas para poder estudar, seja no seu setor ou em algum assunto que com criatividade se encaixaria.
6 | Crítica dos profissionais do bar
Se você pretende ser mixologista da indústria, prepare-se: você sempre será alvo de críticas ou dúvidas! Saiba que ao mesmo tempo que você se torna referência, pode ser que você seja alvo de chacota. Você já pensou que ser mixologista de uma marca é mais difícil que estudar medicina na USP? As vagas são raríssimas e exigem alguns quesitos (pelo menos deveriam). Se você não tiver respaldo, mesmo que pequeno, de experiência no setor, liderança e boa oratória, você sempre será colocado em xeque.
Ser um bom bartender não lhe transformam em um grande tutor ou professor. Para isso didática, presença e um bom discurso são extremamente necessários. Não se empolgue com uma vaga dessas se você não tiver certeza que tem essas características. Pode ser que manche sua imagem. É preciso aprender a hora certa de falar sim e não. Paciência é uma característica que sumiu da nova geração. Aprendem muito rápido e na ordem contrária. E se tiver todos os quesitos, cada evento que você produzir para um bartender terá uma crítica. “Bebida de menos”, “comida de menos”, “faltou chapelaria”, “o assunto abordado eu já tinha aprendido no blog gringo”, “eu não ganhei então foi carta marcada”, “só convidam os amigos”, etc.
Não é fácil agradar o bartender por aqui. Não vêem que em um mercado de mais de meio milhão de profissionais no país você consegue atender 500 profissionais. Imagina se você não tiver o mínimo de respaldo dos colegas?
7 | Ser mixologista é muito complicado
A primeira coisa é entender uma diferença: Quando chamamos alguém de Brand Ambassador (ou Embaixador de Marca), essa pessoa pode ou não ter especialização em coquetelaria. O cargo deixa claro que o profissional é a voz da marca e não necessariamente um ultra-blaster-foda-bartender. Porém existem sim, embaixadores de marca que são mixologistas, geralmente são os que tem maior destaque no mercado.
Porém quando falamos mixologista, falamos de caráter técnico. Ter capacidades plenas de encontrar soluções. Acreditem não é fácil. Pensem comigo: Se o Frank ou o SubAstor fecharem um contrato com a Pernod Ricard, com certeza eles não precisarão da minha ajuda para criar receitas ou melhorar a operação do bar por motivos óbvios né? Na liderança existem dois monstros que eu sou muito fã. Então o mixologista geralmente está nos bares médios aos piores lugares. Nossa função não é fazer com que um bar da cidade se torne um dos 50 melhores do mundo. Nossa função é transformar aquele bar cheio de latas vencidas, ferrugem na geladeira, lodo na borda da pia, com faca de serra Tramontina para corte de frutas e tábua com mancha de sangue de carne se transformar em um bar apto para fazer o básico bem feito, limpo e organizado.
Achar soluções que não custem e que mude a rotina do bar é complicado pois você terá que convencer o bartender, o gerente e o dono do bar que ele precisa de mudanças para operar melhor. Isso significa gastos, trabalho, tempo. E na maioria das vezes você não tem nenhum dos três. Então meu amigo, se prepare, porque esse trabalho não é simplesmente decorar historinha de marca!
Mas afinal: vale a pena ir para a indústria?
Vale sim, mas cuidado: antecipar essa trajetória é um erro que muita gente comete por não querer ficar atrás do balcão, por status ou simplesmente por se achar mais capaz do que outros que parecem ser menos preparados que você. Afinal ensinar e treinar é uma grande responsabilidade.
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