Com amargor, com afeto, por Jessica Sanchez especialmente para o Mixology News
Muito se fala sobre personalização, releituras, twist e sobre isso tudo ser a bola da vez na coquetelaria. Particularmente, quando ouço algo do tipo lembro das receitas da minha bisavó. Era tudo muito bom e com um toque de mistério.
E estava aí a grande sacada: era o segredo que tornava as coisas mais interessantes. Ora com o ingrediente secreto que não existe, ora com o tempero no ponto certo. É por isso que precisamos falar sobre amargor.
Algo como fazer arroz: todo mundo sabe como, mas não tem nenhum que se compare ao da nossa mãe. E é o tempero – às vezes tão singelo – que confere essa personalidade (e não me refiro ao ‘amor’ que cantam o Zezé e o Luciano).
Do outro lado do balcão a história não é diferente. Coquetelando dia a dia a gente tenta passar um pouco de si para o muito que é produzido. A partir disto, proporcionar experiências diferentes que não serão encontradas mundo afora. É o nosso toque pessoal. E a grande genialidade do simples está em ser simples mesmo. Afinal, ‘menos com menos é sempre mais’ e os temperos fazem jus a esta necessidade.
Atrás do balcão nos valemos de sais, xaropes, infusões, sementes, folhas, bitters (ah, os bitters!), que são os temperos que conferem aos espíritos a personalidade.
Extremamente aromáticos, ora aperitivos, os bitters já foram usados como estimulantes de apetite, contra soluços, dores estomacais, ressaca, além de serem indispensáveis para a limpeza do paladar.
De receita extremamente secreta, a Angostura Aromatic Bitters (o bitter mais popular no mundo vendido em rótulos de jornal) traz consigo muitas curiosidades. Contam as más línguas que os lotes dos ingredientes que chegam à fábrica em Ciudad Bolívar, na Venezuela, são nomeados por códigos, e nunca pelo nome do produto, a fim de preservar a receita. Um dos maiores erros sobre os bitters é pensar que o seu uso torna o drinque amargo. O termo amargo não se refere necessariamente ao sabor em si, mas a classificação aromática em que ele se insere.
Biologicamente a aversão ao amargor é explicada pelo fato do organismo transmitir um sinal natural de algo tóxico. Desta forma é possível entender a dificuldade de introduzir o amargo principalmente em países onde não há uma cultura deste consumo. Por outro lado, o amargor apresenta uma aceitação muito grande quando encontrado no café, chocolate, berinjela e chás, que causam aquela vontade de dar mais um gole ou mordida, e depois mais outra – como bem exemplificado no livro The Flavor Bible, de Karen Page e Andrew Dornemburg.
Em geral, estes produtos geram uma forte produção de serotonina no organismo, o que explica muita coisa! Então, aproveite a providência divina e distribua felicidade por aí. Eu, por exemplo, levo sempre um bitter na bolsa, deveras antiquado para alguns, mas se for Antiquado com Rye Whisky, aceito o título de bom grado.
Voltando à minha bisavó, não era sobre um segredo cabuloso, ou parte do casco da tartaruga que ela usava nos chás terapêuticos quando a gente ficava doente. Na maior parte das vezes era algo simples, singelo, mas carregado de um significado forte que trazia toda a complexidade da interpretação consigo.
Era o amargo das coisas ao redor que cabia ali no prato, ali no suco, e deixava o salgado mais atraente, o doce mais interessante. Eram os lances de angostura que ela jogava no suco que a minha mãe tentava reproduzir em casa e saia tão diferente. Ela sabia o ponto do amargo necessário na vida.
Compartilho a receita, provando a máxima que a matemática me trouxe pra vida, lá no começo da nossa conversa:
30 ml de suco de limão siciliano fresco
30 ml de suco de limão tahiti fresco
20 ml xarope de açúcar 2:1
4 lâminas de gengibre
Bata tudo com gelo e coe para uma jarra.
Acrescente 500 ml de água, gelo e finalize com 4 gotas de Angostura Bitters.
E pra desinibir a Palmirinha que há dentro de você, aqui vai uma receita bizarra e interessante. Experimente fazer uso da Angostura como ingrediente principal:
45 ml de Angostura Bitter
22 ml de suco de limão fresco
30 ml de xarope de açúcar 1:1
1 clara de ovo
Coloque a clara de ovo e o limão numa coqueteleira e bata por 30 segundos.
Acrescente o bitter, o xarope, pedras de gelo e bata novamente.
Coe para uma taça previamente resfriada.
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