Quando a palavra cocktail foi mencionada pela primeira vez, lá em 1806 pelo jornal  The Balance and Columbian Repository, a principal preocupação das pessoas era a própria liberdade. Não necessariamente o direito de ir e vir, mas o valor dos seus direitos na prática. O texto com a citação apontava o hábito de beber coquetéis como “evidência da intemperança na juventude urbana”, reflexo do comportamento descontente dos jovens com sua realidade.

Descontentamento seguido por revoluções que mudaram os sistemas econômico, político e social, marcando a afirmação do Capitalismo e a “garantia” de direitos como a liberdade. Se antes o bem-estar era ligado a estar livre, a partir de então passou a ser medido pela falta de privações tornando o consumo parte do processo de integração social. Se você possui uma TV, faz parte do grupo de pessoas que têm maior acesso à informação (seja ela de qualidade ou não), o que te faz privilegiado em relação à parcela que não tem.

Visto pelo prisma do alimento, nada exemplifica melhor a relação entre consumo e sociedade do que a frase “você é o que você come”. Ou seria “você come o que você é”?

Assim propõe o antropólogo Robin Fox em sua publicação, “Comida e Alimentação, Uma Perspectiva Antropológica” de 2014, sugerindo que os hábitos alimentares constroem nossa participação e pertencimento à sociedade, por isso, por exemplo, respeitamos horários comuns para as refeições sem que elas tenham qualquer relação com a qualidade da nutrição e aderimos a dietas em busca de identificação com certos grupos, mesmo que a grande maioria delas não tenham comprovação cientifica. Não parece muito diferente do consumo de manada que vemos constantemente nos bares, não acha?

Já a bebida (principalmente a alcoólica),  que não conta com tanto apelo nutricional, sempre foi encarada mais como ritualística, tendo uma identificação ainda maior com moda e classe. Novidade? Não, nada novo, nem exclusivo ou importado, afinal fermentados produzidos por nativos, desde tempos imemoráveis, ainda cumprem sua parte em eventos que celebram passagem, união ou destacam papéis de importância na comunidade.

Além disso o acesso aos meios de comunicação que definem o que é desejável ou não (como as mídias sociais) homogenizam a cultura e dão a constante sensação de alienação, nos fazendo ter sempre um pé atrás com o que filósofos e sociólogos Theodor Adorno e Max Horkheimer chamaram em 1944 de Indústria Cultural o fato de que a produção de cultura é ligada ao consumo em massa e seu lucro.

Essa desconfiança continua gerando indignação, como no post compartilhado com a hashtag #verdade, que chamou minha atenção mês passado.

Seu texto moderniza o conceito da matéria publicada a 217 anos atrás, destacando o poder do coquetel em aferir status, usando a (infeliz) comparação: “a mulher com sua taça de gin é o novo homem com o relógio no volante”.

Embora muito tenha mudado desde que o “elemento perigoso do reino dos apostadores e vigaristas” era o alvo do consumo de coquetéis pela elite participante das “caças a raposas e partidas de pólo” – como já apontou  Ted Haigh em seu livro Vintage Spirits and Forgotten Cocktails de 2004 -, a bebida continua marcando um padrão cobiçado de consumo – como um relógio exibido na janela do carro ou a taça de gin em um camarote –  levando à compra de um item da moda, por fazer o consumidor acreditar que isso é imprescindível para que ele seja aceito.

Damos a esse fenômeno o nome de consumo de massa.

Justamente por oferecer um produto elitizado, que pertencia somente a quem podia conhecer outros países e culturas, os praticantes da coquetelaria costumam enxergar valor no consumidor especializado (ou, ao menos, iniciado) e precarização do seu trabalho no consumo de massa.

Mas a realidade é que a “taça de gin na mão da mulher” atende ao outro lado da Indústria Cultural, ela representa o acesso dos menos privilegiados, neste caso a mulher brasileira, à uma cultura antes exclusiva de outras classes e gêneros, neste caso o modelo de coquetelaria internacional.

Digo modelo internacional, porque nós já tínhamos um representante nacional que ia muito bem no papel democratizador da coquetelaria, a Caipirinha – que perdeu o alho ao longo dos anos enquanto se firmava como o primeiro clássico brasileiro reconhecido aqui e lá fora, fazendo tanta fama que virou alvo de apropriação de outros destilados.

Tanto o G&T quanto a Caipirinha acertam em cheio ao menos em dois dos principais fatores de escolha considerados pelo consumidor, segundo a agência de inteligência de mercado (Mintel):  Sabor (43%), a Acessibilidade (35%) e a Familiaridade (32%). Dados que nos fornecem uma nova visão sobre as possibilidades para a expansão desse mercado potencial.

Veja bem, mesmo com o impacto da popularização do G&T, segundo a edição de maio de 2019 do Caderno Setorial ETENE do Banco do Nordeste, em 2018 as empresas que representam destilados formavam apenas 3,3% do mercado de bebidas alcoólicas do Brasil, isso somadas. Ou seja, ainda existe uma margem enorme para crescimento.

Os profissionais mais ligados viram aqui o momento para promover a “educação de paladar”. Cuidado com isso.

Se você parte da premissa de que todo novo cliente tem paladar infantil ou primário, ouso dizer que seu pretensiosismo está empacando a disseminação de uma coquetelaria nacional e de qualidade. O mesmo acontece se, para promover sua marca, você vende ao consumidor uma descaracterização na forma de clássico ou gourmet.

Saber de onde vem e como evoluiu a coquetelaria é algo tão precioso quanto entender a identidade de um povo com hábitos distintos. É mais inteligente aproveitar a onda de interesse e incluir nela a sensação de familiaridade, ganhando a confiança de quem consome, ao invés de hostilizar as escolhas que moldaram seu paladar durante uma vida.

Por isso, fica a dica, aproveite a oportunidade de promover o acesso de todos aos nossos serviços sem cair na armadilha de olhar para o consumidor de cima, como o mestre e protetor das preciosas regras do paladar adulto europeu ou o detentor da verdade absoluta sobre os desejos do bebedor. Com técnica e respeito, o consumidor percebe que merecemos a sua atenção e, aos poucos, vamos convertendo os outros 86,7% do mercado e, assim, dominaremos o mundo

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