Quem foram e o que bebiam os povos originários do Pantanal, a terra das águas.

Na escola não aprendemos sobre o passado da nossa terra, quem viveu ali, o que comiam, o que bebiam, quem estava aqui antes de nós? Sabemos que o Brasil quando “descoberto” era território indígena, mas vou te contar  quais tribos habitavam a maior planície alagada contínua do mundo, a terra das águas que possui rios onde nadam onças.

O Pantanal é considerado um elo entre as duas maiores bacias da América do Sul, a do Prata e a da Amazônia, assim, exercendo a importante função de corredor biogeográfico, permitindo a dispersão e a troca de espécies de fauna e flora entre os lugares.Pesquisas arqueológicas indicam que os primeiros habitantes do Pantanal chegaram à planície pantaneira há cerca de 5.000 anos. Registros indicam que uma das tribos que viviam aqui eram os Guatós, habitantes do alto do Paraguai, magníficos canoeiros, pescadores e muito conhecidos como caçadores de onça, caçavam usando a zagaia (lança com mais ou menos dois metros de comprimento e ponta afiada). Exímios atiradores de arco flecha, construtores de barcos com troncos de árvores, podiam ficar dias sobre eles e tinham um modo diferente de viver, sem grandes aldeias, em grupos familiares.

O povo da etnia guatós consumia muito a palmeira-bacuri, conhecida aqui no Pantanal também por acuri, uma das frutas preferidas da arara azul, onde se é utilizada de várias maneiras, a sua castanha madura é comestível rica em oléo graxo e é semelhante ao coco-da-baía, a água do coco verde é potável, seu palmito é o mais gostoso da região. Dela os índios guátos faziam licor do caule, levemente alcoólico usado como fortificante, tomado sempre em momentos especiais.

Outro consumo diário desses povos era e continua sendo a erva mate, tanto o guarani quanto os guatós eram cultivadores de tal erva sem igual, cultura que já esta entrelaçada na nossa região, o refrescante tereré.

Aliados de outro grupo pantaneiro, os kadiwéu guaicurus, conhecidos como cavaleiros do pantanal. Guaicuru que na língua da etnia guarani significa ‘homem mau, ranzinha’ e eles tinham sua própria história para justificar seu espírito guerreiro.

Os guaicurus ficaram conhecidos por ser um povo de porte alto, fortes, e com grande habilidade no trato de cavalos, eles montavam o cavalo no pelo e empunhavam uma lança em combate ficavam de lado no cavalo. Tiveram uma frota que estima-se que chegou de 6 a 8 mil cavalos, sem sabermos ainda ao certo como tiveram o primeiro contato com o animal. Se auto denominavam como ‘Eyiguayeguis’ que significa ‘Gente que vive em meio as palmeiras’ do tipo bocaiuva, do tupi mboka’ïwa, onde os frutos eram consumidos o ano todo por eles. Encontramos em abundância a bocaiuva por aqui, os nativos a chamam de coquinho, possui três amêndoas dentro, bem gostosas.

Outra coisa curiosa é que os guaicurus não cultivavam a terra, pois achavam uma atividade indigna, então garantiam sua comida através de saques em plena colheita.

A principal bebida consumida por eles era o kaüí. Cauim em Tupinambá e caguy em Guarani, que definem genericamente qualquer tipo de bebida fermentada embriagante, não considerando nem os ingredientes nem a forma de produção.

Eram feitas a partir de um único vegetal ou da mistura de duas ou mais plantas. Frutas e/ou mel eram adicionados às bebidas que tinham como base cereais, raízes e tubérculos ricos em amido, para aumentar o teor de açúcares (frutose/glicose) e, pela fermentação, o alcoólico. Já foram descritos  32 tipos de cauins, mas por aqui era produzido a partir da fermentação da mandioca, que você deve conhecer como aipim ou macaxeira.

De sabor bem marcante e de preparação nem tão higiênica, as mandiocas cozidas eram mastigadas e depois cuspidas apenas por mulheres em vasilhas de barro, processo esse para misturar a raiz com a saliva e assim começar a fermentação.

Os europeus se enojaram quando souberam. Jean de Lery, missionário e escritor francês, comentou a forma de mastigação na feitura do caium em 1578 quando foi publicado seu relato de viagem no livro ‘Viagem as terra do Brasil’:

“Para esses leitores que repudiam a ideia de beber o que outra pessoa mastigou, deixe-me lembrá-los de como nosso vinho é feito pelos camponeses que amassam as uvas com os pés, as vezes usando botas; algo que pode ser menos agradável que as mastigação de mulheres americanas. Assim como dizem que a fermentação purifica o vinho, podemos assumir que aquele cauym se limpa também.”

O consumo de bebida alcoólica estava presente na caça, pesca, colheitas e outras atividades para obtenção de alimentos, podendo durar horas a muitos dias, geralmente até acabar o estoque de bebida, sempre com muita cantoria, gritos e danças ao redor das vasilhas cerâmicas onde eram armazenadas. A lenda indígena kadiwéu diz que Dom Pedro II deu as terras que ainda vivem seus descendentes na fronteira de Mato Grosso do Sul com Paraguai, terras ditas que seriam dadas pela sua aliança com o Brasil na guerra do Paraguai, sem nenhum documento oficial comprovando.

Nessas terras indígenas, os rebanhos tomam conta de toda área, fazendeiros ocupam mais de 1 milhão de hectares com rebanho de mais de 600 mil cabeças de gados, área do tamanho da Jamaica sendo de uso exclusivo da pecuária. Essa área é a reserva mais atingida por incêndios no pantanal, segundo programa queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Não posso deixar de aproveitar a oportunidade e manifestar: SOS Pantanal!

O mundo se volta para nós. Mas não conseguimos ver ninguém. É tanta fumaça que as cidades estão cinzas. Pura cinza. Os animais morrendo queimados. Não sei quem é o culpado. Deduzo. Só sei que meus antepassados, os primeiros habitantes desta planície onde quer que estejam hoje, choram junto conosco.

Termino nossa conversa apresentando, para quem ainda não conhece, o poeta Manoel de Barros no “Livro das Ignorãças”, amante explícito desse meu maravilhoso bioma:

Auto-Retrato Falado

Venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda no Beco da Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão,
aves, pessoas humildes, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar
entre pedras e lagartos.
Já publiquei 10 livros de poesia: ao publicá-los me sinto
meio desonrado e fujo para o Pantanal onde sou
abençoado a garças.

Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo que 
fui salvo.
Não estou na sarjeta porque herdei uma fazenda de gado.
Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer da moral porque só faço
coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.

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