A Baunilha do Cerrado tem muito a nos ensinar. Quais as responsabilidades do bartender além da barra, melhorando o ambiente que nos cerca?

Uai, mai bartendi num é aquela figura que prepara e serve com excelência aqueles goró “jeitadu pur bosta” pra clientela com um sorrisão bunitu na cara?!

Que mantém sua estação de trampo sempre limpa e organizada mesmo durante uma natação tenebrosa?! Que sabe de cor e salteado as técnicas, histórias e medidas dos icônicos coquetéis clássicos mundiais?!

Que organiza estoque e faz planilha como ninguém?! Que tira o sacão de lixo mesmo com a coluna toda “rrrregaçada” no final do turno?!

Estes são só alguns pontos que temos de responsabilidade na operação do bar, entretanto não podemos esquecer da responsa além da barra!

Uma vez que selecionamos qualquer ingrediente em nossas produções, temos que considerar como foi sua trajetória até chegar em mãos e a viabilidade para o bar.

É indispensável conhecer a origem do insumo, mas acima disso, é um dever valorizar quem o produziu. Esse fator humano é essencial se quisermos ter um comércio justo, fornecendo dignidade e estabilidade ao pequeno produtor.

Em tempos de valorização de ingredientes nacionais, campeonatos e “storytelling” a milhão, profissionais de bares e restaurantes buscam cada vez mais diferenciais para surpreender, se destacar e expandir a clientela em momento de crise. Lembre-se que tudo tem um custo e a tomada de decisão para trabalhar com determinado ingrediente pode literalmente influenciar negativamente na fauna, flora e hábitos dos povos tradicionais do seu Bioma.

A rotina de bar é corrida pacas, às vezes o caminho mais curto e tentador é correr em algum supermercado e botar logo a bola pra rolar. Mas nem sempre são encontrados produtos orgânicos certificados e raramente os funcionários dispõe de treinamentos para eliminar nossas dúvidas em relação ao cultivo e rastreabilidade deles.

Sachês e outros pacotes com especiarias ou ervas secas podem conter impurezas como resquícios de outros vegetais e até mesmo pequenos insetos que dão volume ao produto, mas roubam sua potência aromática e de sabor. Frutas que tomaram banhos de agrotóxicos somados aos pesticidas (para crescerem rapidamente e livres de pragas) que serão amassadas com açúcar e mergulhadas no álcool para o deleite do desavisado cliente. E por aí a banda toca, podemos citar vários exemplos cotidianos aplicados em bares por todo o país.

Requer ao bartender sair um pouco da zona de conforto e buscar alternativas mais sustentáveis para trabalhar esse contato direto com o produtor. Se aliar a outros profissionais de A&B que tenham filosofia parecida e busquem realizar compras coletivas é sempre uma boa opção e oportunidade de entrelaçar novos vínculos.

Bater uma prosa com os matutos em mercados locais e feiras livres, entrar em contato com a Associação de Produtores Rurais do seu município, buscar por movimentos locais de alimentos sustentáveis, procurar por organizações coletivas agroecológicas na sua região, assim como comunidades de povos tradicionais podem ser caminhos supimpas a percorrer.

São algumas soluções práticas para agir localmente, assegurando a qualidade dos ingredientes livres de toxinas, mais frescos e saborosos, que darão melhor potência de aroma e sabor com menor desperdício, aumentando não só a limpeza na sua consciência, mas também a lucratividade do seu bar.

Desse jeitão você fortalecerá produtores que podem ter um retorno financeiro justo e continuar cuidando da terra, fazendo sua parte na cadeia com consciência para prosperar e produzir com abundância e harmonia, agregando valor aos produtos e gozando de excelente qualidade de vida e proteção ambiental.

Num momento pandêmico onde muitas pessoas buscam o bem-estar, grupos como as Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSA) ganham força. Basicamente é uma relação que se estabelece entre consumidores e produtores com as responsabilidades divididas. Uma forma de adquirir insumos fresquinhos por um valor fixo previamente combinado!

Um grupo de bartenders parceiros da sua cidade se comprometem a desembolsar um tutu a cada período definido antes com o(s) produtor(es). Seja por mês, semestre, trimestre, ano, não importa, o que vale é ser comum acordo entre ambas as partes!

Aí fica garantida a compra de médio a longo prazo na produção de um ou mais agricultores. A logística também fica mais enxuta, os produtos podem ser entregues centralizados em um dos bares para realizar a partilha posteriormente.

Outro ponto favorável das CSA é que os consumidores podem entregar aos fornecedores sementes ou mudas da agricultura não convencional que vem ganhando força devido ao crescimento da demanda. As Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) normalmente são fáceis de se adaptar ao local, propagam tranquilamente, danadas de rústicas não requerem tanto manejo e cuidado quando comparadas as hortaliças convencionais.

O plantio em consórcio, a adubação verde e rotação de culturas são técnicas utilizadas pelos pequenos produtores compromissados com os princípios da agricultura agroecológica e sustentável, que utilizam da sabedoria ancestral para cultivar sem maltratar o solo e ainda protegem nossos berços d’água.

Pois bem: vou dar uma de Morpheus agora e te convidar a tirar a farpa da sua mente, oferecendo a pílula vermelha, e, se estiver mesmo a fim de ver até onde desce a toca do coelho vem comigo!

O Cerrado, meu amado domínio fitogeográfico que tem a maior farmacopeia do mundo sofre sem fim. Vou destacar a Baunilha do Cerrado como exemplo de insumo que é um dos meus favoritos e que sofre diversas ameaças. Muitas áreas demarcadas que supostamente seriam de preservação por serem patrimônios ambientais e culturais vem sendo atacadas e invadidas sistematicamente.São liberados pelo atual governo cada vez mais agrotóxicos banidos de países desenvolvidos (infelizmente 2020 foi o ano em que batemos todos os recordes de liberações)  que prejudicam o solo, contaminam os lençóis freáticos e são nocivos também aos animais e seres humanos. Esses povos sentem na pele cada pulverização dos aviões do Agronegócio. Comunidades isoladas sofrem arduamente com a ausência de profissionais da saúde.

Antes de “passar a boiada”, extrativistas oportunistas fazem a rapa nos recursos naturais das Reservas, incluindo ingredientes nobres como a própria Baunilha do Cerrado que será vendida no mercado clandestino. Novamente reforço a responsa além da barra! Vamos certificar que não compremos de mãos erradas e gananciosas. Ainda podemos quebrar o ciclo e empoderar aqueles que sempre deveriam ser exaltados, porém foram calados.

Num país que em que o atual governo acha tolice investir em educação e ciência botamos a perder a diversidade de fauna e flora, espécies endêmicas que não existirão mais, muitas potencialmente medicinais e de propriedades terapêuticas que poderiam ser cura de doenças, fora todo o conhecimento ancestral dos povos suprimidos pela expansão e pressão do agronegócio nada “pop”.

Faltam políticas públicas que incentivem a fiscalização nessas delicadas regiões, falta a população valorizar o ouro que são as pequenas comunidades com um povo guerreiro sincronizado com a força da terra. Falta investimento em pesquisas para ampliar o conhecimento e tentar resgatar espécies ameaçadas de extinção. Ampliar a troca no diálogo entre saberes científicos e tradicionais serão a chave para um futuro mais promissor.

“O Cerrado para nós é um espaço de vida, sobrevivência, subsistência e harmonia” relatou Natália Domingos do Quilombo Kalunga para o portal Slowfood Cerrado.

Mulheres fortes, que caminham horas a fio embaixo do sol brabo em terrenos tortuosos muitas vezes de difícil acesso, numa época específica do ano para coletar baunilhas são apenas um exemplo de resistência e do conhecimento transmitido de geração em geração.

Quando adquirimos um produto de comunidade tradicional sem passagem por atravessadores, que foi coletado com todo o carinho e sabedoria ancestral, em simbiose com o meio ambiente, colocamos em holofote o trabalho de formiguinha de pessoas que tem sua luta revigorada e são empoderadas com mais visibilidade. É como se aquela voz cansada por ser atacada tantas vezes, ao invés de se calar agora ganha um alto falante.

Pronto, você agora escorregou até o fim da toca do coelho.

Eu sei que a escolha que faço hoje pode calar ou amplificar uma voz amanhã pois eu aceito a responsa além da barra.

Receba nossa newsletter com os melhores artigos do universo da mixologia.

Obrigado por se inscrever!